Num domingo qualquer, qualquer hora Composição: Milton Nascimento / Ronaldo Bastos |
Com a COVID-19 estamos percebendo que muita coisa pode ser realizada com as plataformas de Tecnologias de Informação disponíveis. Depois de passada a crise será possível analisar os resultados obtidos com as diversas alternativas desenvolvidas. Mas como diz a música “Sei que nada será como está Amanhã ou depois de amanhã“, a vida normal vai recomeçar, mas diferente. O trabalho remoto mudou muitas percepções do que é importante. Muitos trabalhos que eram considerados estáveis evaporaram. O Ensino foi completamente reformulado, inúmeros postos de trabalho evaporaram, inúmeras pessoas precisarão criar novas alternativas de trabalho. Há bastante tempo, em 2006, escrevi um texto para ser discutido no encontro onde definimos os Grandes Desafios da Computação pela SBC, naquele texto salientava a importância de aspectos não técnicos para a computação. Para permanecer relevante para o mercado, os profissionais geralmente precisam aprimorar seus conhecimentos. Esqueça a rotina e a duração dos cursos dos alunos. Atualizações pontuais e cursos rápidos de treinamento determinam as competências de futuros profissionais. A tecnologia exige que as pessoas se mantenham atualizadas não apenas com as novas tecnologias, mas também com seu uso. A administração terá um problema em criar uma empresa e mantê-la competitiva em um mercado em constante mudança. O mesmo se passará com os trabalhadores liberais e prestadores de serviços. Mas o mais importante é que precisamos quebrar a obsessão tecnológica, a frase atribuída a Albert Einstein “Tornou-se chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade” mostra exatamente este ponto. É evidente que passamos a cultuar a crença da tecnologia, como se a tecnologia pudesse resolver os problemas da Humanidade. A Tecnologia é uma ferramenta extremamente útil para melhorar a qualidade de vida, a saúde mas está reforçando as desigualdades e estimulando os radicalismos. Deixamos de pensar em temas mais abstratos como se cada nova geração de telefone celular fosse um grande passo na evolução.
Hoje, relendo o livro do Domenico De Masi: O Futuro do Trabalho consegui perceber que a pandemia acelerou enormemente as mudanças previstas. O trabalho, como o conhecemos, está sendo destruído e seríamos muito mais felizes se tentássemos adequar os nossos comportamentos às regras da sociedade pós-industrial, integrando na nossa vida o ócio e o trabalho, de modo a criar uma única e satisfatória continuidade. Então o tema dos Grandes Desafios voltou com Computadores, criatividade, estética, bem no contexto desenvolvido por Domenico De Masi. Após a grave crise da Peste Negra na Europa, fazendo uma devastação em Florença, ocorreu mudança na visão do mundo das pessoas na Itália do século XIV e isso levou ao Renascimento. Minha expectativa é que a pandemia da COVID-19 leve a Humanidade para um novo Renascimento. Vejamos então o que nos levou à situação atual. A seguir um resumo do meu posicionamento no encontro da SBC.
Os computadores foram utilizados inicialmente como máquinas de calcular seguindo a sequência de ábacos, réguas de cálculo, máquinas diferenciais, calculadores mecânicos, máquinas tabuladoras e finalmente computadores digitais, com o ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer) há mais de sessenta anos1. Este início deu à área da Ciência da Computação uma forte tendência matemática e quantitativa. Fica clara a distância entre o início do desenvolvimento da computação e as expectativas atuais. A Revista Veja2 publicou, há bastante tempo, um artigo com o título “O Windows descobre a beleza”. O subtítulo é “O novo sistema da Microsoft é mais funcional, seguro e elegante”. Neste artigo, para o púbico leigo, o sistema operacional é tratado como um elemento integrador de funcionalidades, de aplicações domésticas, depois são discutidas as suas características técnicas. Domenico De Massi3, trata da criação de novas alternativas, livres das limitações da materialidade. Neste capítulo escreve De Massi: “A descoberta é limitada por alguns vínculos já a invenção, pelo contrário, pode prosseguir por infinitas direções, pode abrir infinitos campos e pode seguir infinitos caminhos: tanto os objetivos quanto os itinerários são ilimitados”.
Ao analisarmos o que é um computador, falta palavra melhor (computador é algo que computa, faz cálculos) – mas em francês é ainda pior, pois um computador é um ordinateur (classificador) – devemos pensá-lo como algo mais do que uma máquina de calcular associada com uma lógica binária. Poderia ser pensado como uma máquina de inferência lógica, imaginem onde estaríamos se os primeiros computadores tivessem sido estruturados assim! Em vez de um computador teríamos um raciocinador! E a beleza? Encontrei um artigo muito interessante no Scholar Google, entre centenas de outros, denominado “Computers and Beauty”, 1977, by Mutsuko Sasaki, Tateaki Sasaki. Onde se encontra este tópico em nossos cursos de computação? O mercado de produtos de hardware está cada vez mais orientado ao design. O seguinte texto, achado na Web, caracteriza bem este fato “Acrylic windows, neon and strobe lights, Day-Glo colors, and vaguely alien shapes may be appealing for desktop PC cases“. O interesse público está mudando para a estética, para a satisfação pessoal e para a integração de serviços e funções. Hoje um produto perfeitamente funcional, software ou hardware, mas esteticamente desagradável ou inadaptado aos hábitos e a cultura local desaparece logo do mercado.
Finalmente é preciso considerar que não há mais uma dicotomia entre estudo, diversão e criatividade, mas esta nova realidade ainda não foi completamente integrada à Computação. Este é o desafio que proponho: mudar o enfoque da Ciência da Computação, de exclusivamente uma ferramenta técnica, para considerá-la como elemento complementar das Humanidades. Usar o computador como elemento de melhoria da qualidade tanto do ponto de vista social e estético quanto da qualidade de vida em geral, permitindo a integração fácil de serviços, diversão e ensino. O cenário está montado para o novo Renascimento, desilusão com o culto à Tecnologia, desaparecimento de inúmeras formas de trabalho, desemprego generalizado. o Novo Renascimento teria este nome em virtude da intensa revalorização das referências ao Humanismo e às Artes, que nortearão um progressivo abrandamento da influência do dogmatismo tecnológico e do materialismo sobre a cultura e a sociedade, com uma concomitante e crescente valorização da Arte, do Humanismo e da Natureza. Neste processo o ser humano será revestido de uma nova dignidade, não sendo mais apenas uma engrenagem da produção industrial e do consumismo, e colocado no centro da realidade. Então poderemos ter, com o apoio da tecnologia, o ressurgimento das Artes, da Beleza e da criação individual. Não será mais emprego mas trabalho e criação.
Pontos a discutir:
- Na Universidade precisamos discutir os currículos fechados que mantém alunos de diferentes áreas isolados. Precisamos integrar os estudantes de computação com os de design, de administração, de sociologia e de arte, entre outros. O atual modelo de disciplinas estanques não parece adequado a este objetivo.
- Precisamos de liberdade de estudo para os alunos, devem poder escolher as disciplinas que lhes forem atraentes sem o engessamento dos atuais currículos. É claro que para áreas críticas como, por exemplo, Medicina, muitas de Engenharia para a obtenção de um título será necessária a certificação de todos os cursos de um currículo
- As Agências de Fomento devem criar editais de pesquisa ou desenvolvimento que contemplem os aspectos multidisciplinares sem descuidar da qualidade em cada área. É preciso que cada membro de uma equipe multidisciplinar seja competente em sua área, a competência da equipe multidisciplinar deve ser avaliada depois de assegurada a competência individual em cada área específica. A competência multidisciplinar se desenvolve sobre a competência disciplinar.
- Os financiamentos para a Pesquisa devem ser livres, o único critério deve ser a qualidade da proposta. Grandes áreas podem ser definidas, mas não limitados a temas fechados. Um grande exemplo deste approach foi a Estação Zoológica de Nápoles, tratada em detalhe por Domenico de Masi no livro A emoção e a regra: os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950 onde o critério para a aceitação foi a qualidade da proposta e do pesquisador, sem restrições ao tema. A criatividade é inimiga da burocracia de nossas Instituições, para um ótimo estudo do tema sugiro a leitura deste livro onde são estudados grupos criativos.
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- The ENIAC Museum Online, University of Pennsylvania, http://www.seas.upenn.edu/~museum/index.html [↩]
- O Windows descobre a beleza, Revista Veja, n. 1947, ano 39, 15 de março de 2006, p. 90-91 [↩]
- Criatividade, Capítulo nove, O Homem descobre a criatividade e descobre o futuro, Domenico de Massi, Editora Sextante, Rio de Janeiro, 2002, 795 páginas. [↩]