O apocalípse digital

Atualizado há 4 meses


Imagem do sol - NASA
Imagem de erupção solar – NASA

A última manhã de tranquilidade ocorreu no dia 23 de abril de 2061, quando João da Silva se acordou, como de hábito. Logo após, como primeira atividade na manhã, leu sua correspondência, como de hábito, e preparou o café da manhã. A preparação do café foi feita por um comando para seu assistente pessoal que, conhecendo seus costumes alimentares, preparou o pão e os demais acompanhamentos, ajustou a luz e ligou a televisão com as notícias associadas a seu perfil armazenado em um servidor seguro, como de hábito. Após João despachou os pedidos de compra para a rede do supermercado de forma a ter tudo disponível em casa pela noite, como de hábito. Seu assistente pessoal buscou a lista de suas atividades do dia na nuvem, verificou as prioridades e consultando as informações sobre o tráfego na Google Maps preparou um itinerário otimizado que foi carregado no servidor local de tráfego da prefeitura para uso de seu smart-carro que funciona, é claro, integrado com o sistema viário. Início de um dia perfeito, como de hábito!

No dia anterior o astrônomo britânico John Smith tinha visto algo extraordinário: no meio das manchas solares usuais se deslocando seu telescópio vários pontos de luz deslumbrantes brancos cresceram e desapareceram no espaço de cinco minutos, uma labareda solar, um raro lampejo solar de luz branca. No dia seguinte, o plasma expelido pelo sol atingiu a Terra. Iluminou todo o hemisfério norte, até ao Havaí e Roma, com auroras de vermelho vivo, azul e verde brilhante. Houve relatos de perturbações magnéticas: bússolas ficaram confusas durante o bombardeio. Mais a sério ainda, a tempestade solar golpeou a rede mundial de comunicação. Fios explodiram em chamas desencadeando incêndios, os bombeiros não puderam ser chamados para apagar os incêndios, pois as linhas telefônicas não funcionavam; em 2061 toda a telefonia estava baseada na 13ª geração de celulares!

Nesta manhã a tranquilidade de João da Silva terminou! Pelas 10 horas da manhã, vinte e quatro horas após o grande clarão solar, ele estava se deslocando em seu smart-carro quando começaram a saltar faíscas da linha de alta tensão ao lado da estrada. O sistema de condução automática parou de funcionar e uma trava de emergência, felizmente mecânica, atuou e parou o veículo. Nesta hora tudo parou. A falta de energia foi geral, severas tempestades solares são semelhantes ao choque eletromagnético causado por uma explosão nuclear. Danos reais aos fios e aparelhos eletrônicos ocorreram e, dada a ampla difusão, foram de difícil recuperação. Satélites de comunicação são muito vulneráveis, sem a proteção da atmosfera foram imediatamente queimados. João ficou a pé a 10 quilômetros de sua casa, após uma longa caminhada conseguiu voltar e foi obrigado a arrombar a porta, pois a chave biométrica tinha queimado. Seu fogão com placas de aquecimento eletromagnéticas evidentemente não funcionava e a comida supergelada estava descongelando. João disse adeus ao seu notebook. Disse adeus ao seu ar condicionado. Na verdade, disse adeus à tecnologia elétrica por um longo, muito longo tempo.

Esta história foi baseada no Super Solar Flare de 1859. Naquela época não se notou muito a tempestade solar como se faria hoje. O sistema de telégrafo Morse tinha apenas 15 anos de idade. Não haviam redes de TV via satélite, nem caixas automáticos, nem internet, nem telefone celular, nem tablets. Não haviam sido implantadas as grandes redes de energia elétrica de hoje nem o sistema de GPS de navegação por satélite. Imaginem todos os seus dados armazenados na nuvem. Imaginem toda a eletrônica de telecomunicações queimada, imaginem vocês sem backups locais. Um mundo globalizado é extremamente dependente de comunicações eletrônicas para operar serviços bancários, comunicações, saúde, computadores, sistemas de transporte, e uma enorme rede elétrica servindo bilhões de pessoas. Um surto solar na escala do de 1859 poderia acabar com a modernidade por dias, semanas, talvez meses, dependendo do tamanho da erupção. A possibilidade de um evento desta magnitude é de cerca de 12% na próxima década. Cuidado!

Conclusão: não acredite demais em seus dados na nuvem; aliás não gosto nenhum pouco deste termo pois nuvem dá a ideia de algo leve, imaterial enquanto trata-se de grandes servidores ecologicamente irresponsáveis. Mantenha backups protegidos e pelo menos um notebook em uma Gaiola de Faraday de boa qualidade (uma simples caixa de metal bem fechada) se tiver alguma esperança de não perder todos os seus dados. Já havia tratado do assunto da perenidade do material impresso anteriormente. Uma das mais significativas características dos livros é a perenidade. Um livro, impresso em papel de qualidade, pode durar centenas de anos ou mesmo milênios se bem armazenado. Desta forma os livros são referências importantes para a consolidação do conhecimento. Estamos, agora, perante o dilema de valorizar as bibliotecas e conteúdos digitais ou garantir a perenidade de nosso conhecimento e de nossa cultura.

No site da NASA encontra-se este trecho:

“Lanzerotti points out that as electronic technologies have become more sophisticated and more embedded into everyday life, they have also become more vulnerable to solar activity. On Earth, power lines and long-distance telephone cables might be affected by auroral currents, as happened in 1989. Radar, cell phone communications, and GPS receivers could be disrupted by solar radio noise. Experts who have studied the question say there is little to be done to protect satellites from a Carrington-class flare. In fact, a recent paper estimates potential damage to the 900-plus satellites currently in orbit could cost between $30 billion and $70 billion. The best solution, they say: have a pipeline of comsats ready for launch”.

Leiam mais em: Solar Flare: What If Biggest Known Sun Storm Hit Today?

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