Alguns desafios se apresentam para o desenvolvimento da pesquisa em computação. Um deles, e não o menos importante, é a razoabilidade das tecnologias. Na atual situação de crise econômica e de necessidade de repensar o modelo de consumo e o modelo de desenvolvimento industrial e tecnológico é necessário que consideremos a diferença entre o possível, o útil e o razoável. Grande parte da crise atual é devida ao distanciamento da economia e da tecnologia da análise das conseqüências éticas das ações tomadas. Os pesquisadores e os empresários de Computação são, também, agentes éticos que devem ponderar sobre a razoabilidade de suas decisões.
Voltemos às origens. O sentido de razoabilidade pode ser trabalhado a partir do sentido dado por Aristóteles no Livro III da Ética a Nicômaco: razoável há de ser a conexão entre a norma e as exigências contingentes do caso; razoável, a valoração e a eleição entre as diferentes alternativas que tem que realizar o intérprete no jogo combinado de passos lógicos e de avaliações em que consiste seu procedimento, não somente deve viabilizar um efetivo equilíbrio entre exigências contrapostas como, e muito particularmente, lograr uma maior aceitabilidade e consenso por parte da comunidade na qual se insere. No livro III Aristóteles estuda o valor das ações voluntárias e involuntárias. A virtude relaciona-se com as paixões e ações voluntárias. Uma ação deliberada tem origem no desejo do sujeito. Este desejo pode ser racional e pode provir de uma escolha ou de uma intenção. O homem, assim, é responsável por sua virtude e por seus vícios. Não é aceitável tentar realizar tudo o que é possível, isto seria o vício, as ações voluntárias realizadas pelo desejo incontido de realizar o tudo o que conseguimos imaginar, apenas pelo prazer de fazê-lo.
A atual crise foi desencadeada, provavelmente, por esta ambição de acreditar em um crescimento exponencial para sempre. Em acreditar que a tecnologia por si só levaria ao desenvolvimento contínuo e aperfeiçoamento da humanidade. Esta crença está levando, entre outras coisas ao declínio do número de candidatos às áreas de tecnologia e ao aumento de candidatos para a área das ciências sociais. O que é necessário é utilizar com sabedoria a tecnologia e utilizar o conhecimento com ética. O essencial é o uso razoável do conhecimento, como já Aristóteles, há mais de 2300 anos, tratava no seu estudo da ética das ações humanas.
Um dos grandes tópicos de pesquisa e de desenvolvimento atual é a Computação Ubíqua. Esta tecnologia é candidata a uma análise aprofundada de sua razoabilidade devido a sua grande interação com a vida diária. A computação ubíqua cobre essencialmente a forma pela qual os usuários percebem e utilizam seus dispositivos móveis para realizar as tarefas, a forma de criar e implementar estas aplicações assim como do “aumento” do ambiente físico pela disponibilidade e ubiqüidade das informações e serviços. Em uma visão ideal espera-se mesmo que os usuários não percebam sequer a existência de dispositivos, sendo o próprio ambiente modificado por equipamentos embutidos. Um dos pontos centrais da ubiqüidade consiste na obtenção de informações sobre o contexto e sobre o usuário. Entre os elementos desta adaptação encontram-se a normalização e o intercâmbio de informações pessoais; os formalismos que permitam exprimir as regras de adaptação dos serviços em função do contexto e do usuário; a definição de contextos e de preferências dos usuários.
Um cenário possível seria a chegada de uma pessoa em uma sala, o sistema identifica esta pessoa através de uma etiqueta RFID ou reconhecimento visual de faces, recupera suas preferências sobre a temperatura ambiente, o registro médico informando as restrições sobre o nível de umidade devido a asma, suas preferências sobre a música ambiente, seu grau de stress e adapta as condições ambientais a esta pessoa. No caso limite poderemos ter a situação retratada no filme Minority Report. O drama se passa em Washington no ano de 2054 quando a Divisão Pré-crime conseguiu acabar com os assassinatos, pois o futuro é visualizado antecipadamente e o culpado é punido antes que o crime seja cometido. Mas quando o próprio chefe da Divisão é acusado de um futuro assassinato por manipulação do sistema… Ou, ainda, quais são as conseqüências de automatizar a decisão sobre aceitar ou não uma pessoa em uma empresa por suas preferências, conteúdo do Orkut, acessos históricos a Web, amigos (virtuais). Outros aspectos ligados ao big-brother são referenciados no artigo Airport Safety: A Case Study for Infrastructure Security, M. E. Kabay, Ubiquity, Volume 5, Issue 34, Oct. 27 – Nov. 2, 2004. A pergunta que não quer calar é: quanta informação pode ser mantida sobre uma pessoa? Qual é o limite da razoabilidade das decisões? É ético manter estas informações pessoais? É ético criar aplicações ubíquas, adaptáveis com base em que dados pessoais, em que nível? Esta pequena história demonstra claramente o problema:
Telefonista: Pizza Hot, boa noite!
Cliente: Boa , eu quero encomendar pizzas…
Telefonista: Pode me dar o seu NIDN?
Cliente: Sim, o meu número de identificação nacional é 610204791993-8456-54632107.
Telefonista: Obrigada, Sr. Lewis. Seu endereço é 1742 Meadowland Drive, e o número de seu telefone é 494-2366, certo? O telefone do seu escritório da Lincoln Insurance é o 745-2302 e o seu celular é 266-2566.
Cliente: Bem, tudo certo! Como você conseguiu essas informações todas?
Telefonista: Nós estamos ligados em rede ao Grande Sistema Central.
Cliente: Ah, sim, é verdade! Eu queria encomendar duas pizzas, uma quatro queijos e outra calabresa…
Telefonista: Talvez não seja uma boa idéia…
Cliente: O quê? Telefonista: Consta na sua ficha médica que o Sr. sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alta. Além disso, o seu seguro de vida proíbe categoricamente escolhas perigosas para a sua saúde.
Telefonista: Por quê que o Sr. não experimenta a nossa pizza Superlight, com tofu e rabanetes? O Sr. vai adorar!
Cliente: Como é que você sabe que vou adorar?
Telefonista: O Sr. consultou o site “Recettes Gourmandes au Soja” da Biblioteca Municipal, dia 15 de janeiro, às 14:27h, onde permaneceu ligado à rede durante 36 minutos. Daí a minha sugestão…
Cliente: OK, está bem! Mande-me duas pizzas tamanho família!
Telefonista: É a escolha certa para o Sr.,sua esposa e seus 4 filhos, pode ter certeza.
Cliente: Quanto é? Telefonista: São $49,99.
Cliente: Você quer o número do meu cartão de crédito?
Telefonista: Lamento, mas o Sr. vai ter que pagar em dinheiro. O limite do seu cartão de crédito já foi ultrapassado.
Cliente: Tudo bem, eu posso ir ao Multibanco sacar dinheiro antes que chegue a pizza.
Telefonista: Duvido que consiga, o Sr. está com o saldo negativo.
Cliente: xxxxx
Todas estas possibilidades apresentam as dimensões do possível e do razoável. Acredito que a falta da análise ética destas duas dimensões deve-se, em grande parte, aos preconceitos inerentes à avaliação da pesquisa. Uma corrente opina pelo “engajamento” em um desenvolvimento tecnológico dentro de uma visão de estratégia nacional enquanto outra corrente opina pela “ciência pura” em que a qualidade da pesquisa está associada ao limite do conhecimento e não tem fronteiras nacionais. Poucos tratam da análise do que é eticamente razoável e não somente do que é possível realizar. No caso da computação ubíqua, e da adaptação ao usuário, como demonstrado na história acima, temos uma situação realmente crítica em relação à razoabilidade. Saliente, em particular, este tópico dos Grandes Desafios por sua grande ligação com a privacidade e com a interferência nos direitos individuais. Alguns pontos a serem considerados quanto à ética da razoabilidade do uso da tecnologia de forma a lograr uma maior aceitabilidade e consenso por parte da comunidade na qual se insere:
Qual a quantidade de informação deve ser mantida sobre os indivíduos?
Para sistemas ubíquos e adaptáveis o conhecimento do perfil dos usuários é essencial. Mas quanta informação pode ser mantida sem que a privacidade e os direitos civis sejam agredidos?
O aumento dos custos da tecnologia aplicada vale a pena para suportar as adaptações?
Como avaliar um pesquisador levando em consideração os aspectos sociais e éticos de suas pesquisas?
Como evitar que posições políticas partidárias se sobreponham à avaliação com base em percepções filosóficas de ética e de razoabilidade?
Alguns indicadores que poderiam ser levados em consideração:
Quanto uma pesquisa contribuirá para a melhoria do IDH da região ou da população?
Qual a percentagem a ser atribuída entre os indicadores: índice de impacto das publicações, formação de recursos humanos, utilidade social, aceitabilidade da pesquisa?
Qual a percentagem de recursos para garantir a pesquisa básica em relação à pesquisa aplicada e socialmente aceitável?
Estes indicadores certamente influirão na atribuição de recursos públicos à pesquisa em função, não só dos tradicionais indicadores como h-index, patentes e outros, mas de critérios mais filosóficos e éticos. Finalmente, a atual crise com fortes restrições às fontes de financiamento, nos mostra que um novo modelo de desenvolvimento sustentável deve ser criado. A pesquisa faz parte da estrutura econômica e social e deve, portanto, ser repensada. Precisamos assegura a qualidade intrínseca da pesquisa sem nos esquecermos que “Cada ação humana é um engajamento Humanidade inteira” (Sartre).