As LLM são um mal ou um bem?

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A discussão contemporânea sobre o uso das grandes modelos de linguagem (LLM) tem sido marcada por reações emocionais, ora entusiásticas, ora alarmistas, que pouco contribuem para o entendimento de sua real natureza e de suas implicações sociais, éticas e epistemológicas. Em vez de debates polarizados, precisamos substituir a retórica da euforia ou do medo por uma análise profunda e fundamentada, que recupere o sentido filosófico da dita Inteligência Artificial (IA) enquanto forma de conhecimento e prática transformadora. Nesse contexto, é imprescindível repensar os fundamentos éticos e filosóficos que sustentam o desenvolvimento e o uso dessas tecnologias, especialmente considerando sua influência crescente na formulação de políticas públicas, na organização do trabalho e na construção de narrativas sobre o próprio papel humano na era digital. Esta preocupação, sobre a discussão emocional que está ocorrendo sobre a economia, me estimulou a escrever um breve ensaio, Computação e Economia Digital: Fundamentos econômicos, éticos e filosóficos, onde tento colocar a visão de grandes pensadores aplicada ao mundo atual. Agora vou começar a estruturar, da mesma forma, o pensamento sobre o uso da IA, e mais particularmente das LLM no ambiente acadêmico.

Assim, a reflexão sobre as LLM deve transcender o debate técnico ou utilitário e situar-se no marco das responsabilidades éticas e da necessidade de constante autocrítica. Somente uma abordagem que una a análise crítica e a reflexão filosófica poderá iluminar os desafios que emergem da vida digital, desafios que não dizem respeito somente à eficiência ou à inovação, mas também à justiça, à transparência e à sustentabilidade. Uma crítica profunda e serena, ancorada na tradição do pensamento, é condição necessária para que a Computação, e em especial as LLM, se tornem instrumentos de um progresso genuinamente humano e socialmente responsável.

Esta citação no livro O Banquete de Platão nos permite algumas considerações profundas sobre o uso das LLM na educação e como ferramenta de apoio à redação.

Sócrates, no final do diálogo Fedro, conta a história de Teuth, inventor das artes e da escrita. Teuth rogou uma audiência com o rei para mostrar seus inventos. Com respeito à escrita, o inventor afirmou que essa descoberta tornaria os egípcios mais instruídos por amparar a memória e o saber. O rei expressou opinião contrária, sustentando que a escrita causaria esquecimento. Iniciadas na escrita, as pessoas passariam a confiar em caracteres exteriores com prejuízo à reminiscência, exercício interior. Na opinião do rei, Teuth estaria oferecendo a seus discípulos, em lugar da verdade, uma aparência do saber. A escrita tornaria os homens eruditos e não sábios de fato.

Podemos estabelecer um paralelo claro entre a crítica platônica à escrita e as atuais discussões sobre o uso de modelos de linguagem de larga escala na educação e como ferramenta de apoio à redação. No diálogo Fedro, o rei adverte que a escrita, embora pareça ampliar o conhecimento, pode conduzir ao enfraquecimento da memória e da reflexão, substituindo o saber interior pelo mero registro externo. De modo análogo, as LLM suscitam hoje a preocupação de que os estudantes passem a confiar excessivamente em sistemas artificiais para gerar respostas, argumentos e até interpretações, reduzindo o exercício autônomo do pensamento crítico. Assim como a escrita, as LLM oferecem uma aparência de sabedoria, um discurso coerente e informativo, mas que nem sempre é acompanhada da compreensão genuína. A advertência de Platão, portanto, pode ser aplicada ao mundo atual: os instrumentos criados para auxiliar o conhecimento podem, se mal utilizados, substituir o esforço intelectual pela dependência de representações externas, produzindo erudição superficial em lugar da verdadeira sabedoria.

Em contraposição à crítica platônica, é possível afirmar que a escrita constituiu um dos pilares fundamentais do desenvolvimento da cultura moderna. Longe de provocar esquecimento, ela possibilitou a preservação e a acumulação do conhecimento humano ao longo dos séculos, permitindo que ideias, descobertas e reflexões fossem transmitidas, reinterpretadas e aperfeiçoadas. A escrita criou as condições para a memória coletiva da humanidade, permitindo o surgimento das ciências, das universidades e das instituições de ensino.

Enquanto a oralidade limita o saber ao espaço e ao tempo do diálogo, a escrita o universaliza e o torna permanente, abrindo caminho para a crítica, o debate e o progresso intelectual. Foi graças a ela que as tradições puderam ser registradas, os textos clássicos preservados e as novas gerações educadas a partir do legado dos que as antecederam.

Nesse sentido, a escrita não enfraqueceu o pensamento, mas o expandiu e o estruturou, convertendo-se em instrumento indispensável para a reflexão abstrata e para a construção do raciocínio lógico. Se a palavra falada é efêmera, a escrita conferiu à razão uma forma duradoura, e é justamente essa permanência que fundamenta o projeto moderno de ciência, cultura e educação.

De modo análogo, pode-se sustentar que as LLM, longe de representarem uma ameaça ao pensamento humano, podem desempenhar papel semelhante ao que a escrita exerceu na consolidação da cultura moderna. Assim como a invenção da escrita expandiu a memória e a capacidade de registro do saber, as LLM ampliam hoje a capacidade de acesso, síntese e expressão do conhecimento, tornando mais ágil a circulação de ideias e o diálogo entre diferentes áreas.

Se utilizadas de forma crítica e consciente, essas tecnologias não substituem o raciocínio humano, mas potencializam a reflexão, oferecendo novos meios de formulação, comparação e experimentação intelectual. As LLM podem servir como instrumentos de apoio à aprendizagem, à pesquisa e à criatividade, ajudando estudantes e professores a explorar conceitos complexos e a desenvolver novas formas de expressão acadêmica.

Portanto, assim como a escrita foi essencial para a formação da cultura letrada e científica, as LLM podem tornar-se um novo marco na evolução cognitiva e educacional da humanidade — não um obstáculo à sabedoria, mas uma extensão de nossa capacidade de pensar, comunicar e construir conhecimento coletivo.

 

 

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