Este texto propõe uma retomada filosófica e conceitual do problema da modelagem da realidade no contexto contemporâneo da Computação e, em especial, dos grandes modelos de linguagem (LLM). Diante da atual euforia tecnológica e das reações emocionais que cercam o uso dessas ferramentas, torna-se urgente substituir a retórica do encantamento ou do temor por uma análise profunda, racional e crítica, à altura da tradição filosófica que, desde Parmênides [1] , busca compreender a relação entre o pensamento e o ser. Assim como o filósofo distinguia o Caminho da Verdade do Caminho da Opinião, dominado pelas aparências sensoriais e pela multiplicidade ilusória, também hoje é necessário distinguir entre o que as LLM representam como modelo e o que de fato constitui a realidade que pretendem descrever.
A reflexão filosófica e epistemológica permite reconhecer que toda modelagem, seja na lógica, na economia ou na computação, implica uma representação parcial e idealizada do real, construída segundo princípios, restrições e escolhas humanas. Nesse sentido, compreender as LLM exige mais do que avaliar sua eficiência técnica: requer situá-las no horizonte mais amplo da produção de sentido, da responsabilidade ética e da autonomia intelectual. Ao integrar as dimensões econômicas, tecnológicas e filosóficas, este texto busca oferecer uma leitura crítica e abrangente das novas formas de representação e inferência, destacando como elas reconfiguram tanto a prática científica quanto a própria ideia de conhecimento.
O propósito central é, portanto, reconduzir a Computação ao campo das responsabilidades éticas, das exigências de transparência e da necessidade de autocrítica permanente, reafirmando que o pensamento, humano e artificial, não pode ser dissociado de suas condições de validade e de suas consequências sociais. Assim, refletir sobre os fundamentos da modelagem da realidade e sobre o papel das LLM não é somente um exercício técnico, mas um imperativo filosófico: compreender o que significa conhecer, representar e agir em um mundo cada vez mais mediado por sistemas que, embora produzidos pela razão, podem obscurecer a própria verdade que deveriam revelar.
O Caminho da Verdade de Parmênides (Osborne, 2013), capítulo 2, também conhecido como Aleteia, é o caminho da razão pura que leva à realidade imutável, una e eterna do Ser. Ele contrasta com o Caminho da Opinião (doxa), guiado pelos sentidos ilusórios e por um mundo de aparências mutáveis e enganosas.
Pois desta primeira via da investigação eu te afasto e também do caminho ao longo do qual os mortais que nada sabem vagueiam, cabeças duplas…
Em sua doutrina sobre o Caminho da Verdade, Parmênides estabelece um dos fundamentos mais rigorosos do pensamento racional. A deusa que instrui o poeta-filósofo ensina que apenas a razão pode conduzir ao conhecimento verdadeiro, pois o pensamento e o ser são uma e a mesma realidade. Assim, a via da verdade é o percurso da pura compreensão, que exclui o engano das aparências sensoriais. Os sentidos, ao apresentarem o movimento, a mudança e a multiplicidade, não revelam a essência da realidade, mas somente suas manifestações ilusórias.
O verdadeiro conhecimento, segundo Parmênides, é alcançado por meio de um raciocínio dedutivo e a priori, independentemente da experiência sensível. Somente este tipo de conhecimento pode penetrar a estrutura imutável do Ser e revelar a natureza permanente da existência. Em contraste, o Caminho da Opinião constitui a via enganosa dos sentidos, aquela que nos induz a crer na pluralidade e na transformação contínua do real. Trata-se do domínio do doxa, no qual o mundo se apresenta como um fluxo incessante de nascimento e morte, de geração e corrupção — fenômenos que, para o pensamento lógico, são impossíveis. A opinião, fundada nas percepções mutáveis e nas crenças particulares, conduz somente a um saber instável e incerto, incapaz de atingir a verdade universal.
Desse modo, Parmênides estabelece a distinção radical entre o conhecimento verdadeiro, fundado na razão e na unidade do Ser, e o conhecimento ilusório, baseado nos sentidos e na aparência. Essa distinção inaugura a tradição metafísica do Ocidente, na qual o ser e o pensar se identificam como os polos inseparáveis da busca filosófica pela verdade.
Na tradição filosófica, especialmente no pensamento de Parmênides, estabelece-se uma distinção fundamental entre o Caminho da Verdade e o Caminho da Opinião. O primeiro se refere ao conhecimento fundamentado, construído sobre bases racionais e evidências verificáveis; o segundo, ao contrário, corresponde a percepções enganosas, crenças infundadas e interpretações subjetivas que não resistem a uma análise crítica. Parmênides pode ser considerado o fundador do conceito de prova, mesmo que isso não tenha sido realmente compreendido naquela época.
Nesse contexto, o fenômeno contemporâneo de grupos que defendem a ideia de que a Terra é plana constitui um exemplo paradigmático do Caminho da Opinião. Trata-se de uma construção mental que se afasta das demonstrações empíricas e matemáticas acumuladas ao longo de séculos, desde as observações de Eratóstenes até as medições modernas com satélites, ignorando um corpo robusto de evidências científicas. Ao adotar essa crença, tais indivíduos não somente rejeitam o consenso científico, mas, sobretudo, se enclausuram em um processo de alucinação coletiva, entendido aqui em um sentido epistemológico: a substituição sistemática da realidade objetiva por narrativas subjetivas e autorreferenciais.
Assim, a crença na Terra plana não se reduz a uma simples divergência de opinião, mas exemplifica um modo de pensar que confunde crença com conhecimento, substituindo critérios de verdade por mecanismos de adesão emocional ou comunitária. Essa postura corresponde, portanto, ao Caminho da Opinião, que Parmênides criticou por ser um terreno fértil para ilusões, enganos e falsas aparências, exatamente o oposto do Caminho da Verdade, que exige demonstração, método e abertura ao exame crítico.
Na próxima análise vou comparar as alucinações das LLM com as das pessoas.
Bibliografia
Osborne, Catherine. 2013. Filosofia pré-socrática. [trad.] Marcio Hack. 1ª. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 178. ISBN 978-85-254-2830-1.
[1] Filósofo pré-socrático grego (530 a.C. a 460 a.C)