Um dia destes eu vinha para a Universidade e escutei uma propaganda no rádio de uma empresa se propondo a criação de locais no Second Life para que organizações do mundo real passassem a ter seu espaço naquele mundo virtual. Cheguei na Universidade e um colega me comentou sobre uma aula virtual interessante que ele havia acompanhado (como um avatar) no Second Life, em uma ótima universidade dos Estados Unidos. No almoço alguém falava sobre ter encontrado uma amiga no Second Life (SL). Parece que algo virtual está acontecendo nas vidas das pessoas ou seria um comportamento de fuga criando uma segunda vida sem os problemas da vida real? Eu tinha uma tendência a pensar no SL como uma forma branda de esquizofrenia:
A esquizofrenia é uma doença mental grave que se caracteriza classicamente por uma coleção de sintomas, entre os quais avultam alterações do pensamento, alucinações (sobretudo auditivas), delírios, embotamento emocional, com perda de contacto com a realidade, causando, talvez, um disfuncionamento social crônico. (Wikipedia)
Mas talvez esta interpretação fosse muito exagerada. Quem sabe se a SL não fosse algo tão sério, mas sim uma forma de alienação, de afastamento da realidade, com a fuga dos problemas ou de tentativa de fuga das responsabilidade de um sistema opressivo.
Alienação. Processo que deriva de uma ligação essencial à ação, à sua consciência e à situação dos indivíduos, pelo qual se oculta ou se falsifica essa ligação de modo que o processo e os seus produtos apareçam como indiferentes, independentes ou superiores aos homens que são, na verdade, seus criadores. No momento em que a uma pessoa o mundo parece constituído de coisas – independentes umas das outras e não relacionadas – indiferentes à sua consciência, diz-se que esse indivíduo se encontra em estado de alienação. Condições de trabalho, em que as coisas produzidas são separadas do interesse e do alcance de quem as produziu, são consideradas alienantes. Em sentido amplo afirma-se que é alienado o indivíduo que não tem visão – política, econômica, social – da sociedade e do papel que nela desempenha. (Dicionário de Sociologia)
Depois comecei a achar que estava sendo muito reacionário, será que não havia algo mais no SL que justificasse toda esta atividade e adesão. Mas o que seria? Como início do estudo achei que o caminho seria pensar no SL como um sistema de informação distribuído, espécie de Web 2.0. Resolvi ver o que tinha de material interessante nas minhas aulas de Sistemas de Informação. Naquele curso explico as diferentes formas de interação de sistemas de informação com a realidade. Por este critério os sistema de informação podem ser classificados em: Modelo de Componentes, Modelo de Informações Dinâmicas e Modelo de Controle.
Os componentes são os objetos sendo trabalhados. São dinâmicos, inertes independentes. A sua natureza dinâmica é elementar como, por exemplo: colocar o caractere a na posição {24,32}. Os eventos no domínio dos componentes só ocorrem se iniciados externamente. As solicitações de operações são feitas pelos usuários da máquina para serem executadas pelos componentes. A função do desenvolvedor é a de construir uma máquina que que conecte o domínio de solicitações ao domínio dos componentes de forma a que os requisitos sejam satisfeitos. Nesta categoria podem ser incluídos os editores de texto e as ferramentas de modelagem espacial. O importante é que “A realidade é um modelo interno ao sistema e esta representação é modificada exclusivamente por ações dos usuários”. Estes sistemas são completamente isolados da realidade, apenas a descrevem por intermédio dos usuários.
Modelo de Informações Dinâmicas
O sistema é a máquina a ser construída. O mundo real é o domínio sobre o qual as informações são solicitadas. Este é um domínio autônomo e independente, completamente isolado do comportamento do sistema. O sistema é afetado pelo mundo real pois possui algum modelo interno que representa o domínio de forma a poder gerar as informações de saída. O mundo real não é reativo, isto é, não reage ao comportamento do sistema. Esta classe de sistemas representa uma realidade externa quer seja por meio de dados entrados pelos usuários quer seja por meio de sensores que registram valores obtidos da realidade.
Modelo de Controle
Nesta classe de problema estão aqueles que devem ser controlados pela máquina, agora denominada controlador. O domínio controlado é ativo e reativo. Isto é causa eventos e muda de estado espontaneamente e inicia outros em função dos estímulos do controlador. O controlador tem por função manter o domínio controlado dentro de um comportamento desejado. O controlador possui um modelo completo da parcela da realidade a ser controlada de forma a saber como agir em função das mudanças de estado no sistema real. Neste modelo o sistema controla a realidade.
Mas o SL não se enquadra em nenhum destes modelos. Em uma primeira análise rápida poderia parecer que é um sistema do primeiro tipo, algo que só existe dentro do computador. Mas então qual o motivo de empresas estarem colocando sites neste mundo virtual? Então li um artigo “O virtual não se opõe ao real” de Juremir Machado da Silva, publicado no jornal Correio do Povo de Porto Alegre, dia 11 de agosto, sobre a palestra de Pierre Lévy está sendo apresentada hoje.
O virtual é um problema que demanda uma resposta. Para explicar isso, Lévy recorre a uma metáfora simples: o virtual é a semente. O atual é a árvore que dela brota: “Contrariamente ao possível, estático já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forcas que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou novidade qualquer, e que chama um processe de resolução: a atualização (…) A atualização aparece então como a solução de um problema, uma solução que não estava contida previamente no enunciado. A atualização é criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades (…) O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada assemelha-se ao virtual: responde-lhe”. Não há ilusão. Somente criação. De algum modo, Pierre Lévy parece empregar todas as suas forcas para advertir a todos de que algo muito mais importante do que se diz está acontecendo. A Internet não é apenas um bom instrumento para arranjar amigos ou parceiros sexuais, nem somente um extraordinário banco de dados, mas principalmente uma ferramenta cognitiva que altera a percepção, a memória e o sistema de produção e gestão do saber.
Podemos, então, entender o que está se passando: um mundo virtual está criando uma nova realidade. Acho que quase todos nós já utilizamos a expressão: “Vou ao banco paga esta conta” mas o que faz é acessar o seu banco pela Internet. Ou “Vou comprar uma entrada para o cinema”, na Internet ou mesmo: “Vou fazer compras no supermercado, na Internet. Nossa percepção de realidade está modificada pela virtualidade.
Qual o futuro: imagino que depois do grande boom do SL – parece que está diminuindo rapidamente – o que vai se passar é uma modificação da interface de nossos computadores. Há alguns anos assisti uma demonstração de um ambiente virtual para alunos do primeiro grau, no Chile, onde havia uma praça de uma pequena cidade típica. O aluno poderia entrar no correio e escrever uma carta, a carta era transformada em uma mensagem de e-mail e transmitida para o destinatário, na recepção a mensagem era transformada em um envelope tradicional de carta que podia ser aberto e lido como uma carta normal. Isto era realidade ou virtualidade? A mesma coisa acontece no SL, vejam o exemplo a seguir (cedido pelo Prof. Marcelo Johann): uma aula real da Universidade de Edimburgo apresentada no mundo virtual do SL. Mas ainda podemos falar de virtual? Uma aula em EAD é real ou virtual? E uma aula real transmitida por vídeo apresentada em uma sala virtual do SL?
Chegamos ao incrível Mundo Novo, espero que minha próxima versão de sistema operacional não tenha mais pastas de arquivos mas prateleiras para guardar os documentos e se eu colocar um destes documentos em uma impressora – mas para que impressora? – na mesa de um colega o documento lá apareça, se a mesa no virtual corresponder a uma mesa no real o documento será materializado por meio de uma impressora integrada na mesa. O mesmo com a TV em casa ou com o computador, a mesma interface em que o virtual e o real se confundem. Mesmo que esta experiência do SL não prospere, atualmente há um forte indicativo de sua decadência em número de usuários, a metáfora está criada e consolidada. Daqui para a frente não existirá mais real nem virtual em computação, vamos viver com uma nova realidade expandida, as possibilidades são imensas: óculos sobrepondo mapas às ruas pelas quais caminhamos, pára-brisas de carros com informações sobre o roteiro e avisos de chuva, computadores integrando grupos virtuais com o espaço físico. Qualquer dia destes nos encontramos no SL, ou quem sabe se em nossos computadores, para discutir estas crônicas, até lá…
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