As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz.
Não é a cultura do egoísmo, do individualismo, que frequentemente regula a nossa sociedade, aquela que constrói e conduz a um mundo mais habitável, mas sim a cultura da solidariedade; ver no outro não um concorrente ou um número, mas um irmão.
Educar para a paz também na ciência: um apelo à solidariedade nos grupos de pesquisa
Maria Montessori advertia que educar para a competição é plantar as sementes da guerra. Somente quando educarmos para a cooperação e para a solidariedade, disse ela, estaremos verdadeiramente educando para a paz. A fala ressoa fortemente na realidade atual dos grupos de pesquisa em computação no Brasil, onde, infelizmente, os sinais de uma cultura da competição e do isolamento se sobrepõem aos valores coletivos que um dia foram fundamentais. João Paulo II complementa essa visão ao afirmar que uma sociedade habitável não se constrói com o egoísmo e o individualismo, mas com a cultura da solidariedade, com o reconhecimento do outro como irmão, e não como competidor.
Fui testemunha da formação da comunidade de pesquisa em informática no país. Quando retornei do doutorado, havia cerca de 60 doutores dedicados à construção de uma área ainda incipiente, que se firmava com base em valores como cooperação, compromisso mútuo, idealismo e partilha de saberes. O objetivo comum era o de consolidar um campo científico, estabelecer redes, formar novos pesquisadores e garantir qualidade acadêmica. Era um tempo de pioneirismo e solidariedade.
Hoje, no entanto, a paisagem mudou. Há uma crescente fragmentação, uma busca obsessiva por métricas individuais, um ambiente onde o coletivo cedeu espaço ao desempenho isolado. Em post anterior mostrei o espírito que inspirava os grupos criativos: dedicação total, confiança recíproca, senso de pertencimento, expressividade do trabalho coletivo, segurança intelectual e ousadia compartilhada. Esse modelo, que priorizava o grupo como unidade produtiva e criativa, deu lugar a uma lógica na qual o outro é, com frequência, visto como obstáculo, concorrente ou ameaça.
A consolidação dos programas de pós-graduação, ao invés de fortalecer esses laços, terminou por cristalizar um modelo baseado em rankings e em produção bibliométrica. O QUALIS, embora tenha sido útil como instrumento, passou a ser interpretado como fim em si. A cultura da pontuação prevaleceu sobre a cultura da solidariedade. O resultado disso é visível: professores evitam colaborar com colegas de seus próprios departamentos para não “perderem pontos”; optam por parcerias externas ou mesmo pelo isolamento estratégico, temendo descredenciamento. Não se trata somente de um problema técnico, mas essencialmente de uma crise ética e educacional.
O mais grave é que, ao naturalizarmos essa lógica, acabamos por desfigurar o propósito da própria avaliação: construir excelência acadêmica com base na colaboração, na formação de grupos coesos e na responsabilidade social da pesquisa. Avaliar produção científica como soma de números por autor não considera a complexidade da criação intelectual, nem a essencialidade do ambiente como catalisador de ideias. Não se pode esquecer que a ciência, quando feita com espírito comunitário, gera não somente resultados mais robustos, mas também sociedades mais justas.
A responsabilidade, portanto, não é do QUALIS em si, nem da tecnologia bibliométrica, mas da maneira como decidimos interpretá-los e utilizá-los. Tecnologias são ferramentas, e sua eficácia moral depende dos valores que lhes são subjacentes. Usá-las sem reflexão crítica, sem compromisso com o bem comum, gera ambientes tóxicos e relações sociais empobrecidas.
Pergunto-me, com inquietação, se é justo avaliar pesquisadores trabalhando em campos essencialmente colaborativos como se fossem eremitas do saber. Podemos, financiados por recursos públicos e voltados ao interesse coletivo, sustentar a legitimidade de uma avaliação centrada apenas no desempenho individual? A menos que sejamos Kants isolados em Königsberg — o que certamente não somos — o trabalho científico de qualidade exige convivência, diálogo, escuta e construção conjunta.
É ainda mais preocupante ao pretender vincular a produção científica exclusivamente aos programas de pós-graduação, como se estes fossem sujeitos epistêmicos autônomos. Tal lógica ignora que a produção acadêmica é, por definição, fruto do labor intelectual do pesquisador, que a realiza com base em sua trajetória, formação, redes de colaboração e liberdade investigativa. Programas de pós-graduação são estruturas institucionais de apoio, qualificação e socialização científica, mas não os verdadeiros produtores do conhecimento — essa responsabilidade e autoria são, e devem permanecer sendo, do pesquisador.
Atribuir mecanicamente a produção intelectual ao programa de pós-graduação ao qual o docente está vinculado representa não somente uma distorção conceitual, mas também um risco à própria autonomia científica. Essa prática contribui para uma lógica instrumentalizada de avaliação, que obscurece o protagonismo do pesquisador e reduz sua obra a um mero índice de desempenho institucional. Se almejamos uma ciência crítica, inovadora e socialmente relevante, é preciso que os sistemas de avaliação reconheçam e respeitem a complexidade do fazer científico e a centralidade do sujeito que o realiza.
A proposta da CAPES de uma Avaliação Multidimensional parecia um passo promissor. Mas o que se viu, até agora, foi uma corrida por mais dados, não por mais entendimento. A plataforma Sucupira tornou-se o espelho de um sistema ainda centrado na mensuração sem mediação crítica. Precisamos rediscutir a essência da qualidade acadêmica.
É tempo de recuperar a noção de comunidade científica como espaço de formação mútua e de serviço ao coletivo. Retomar o espírito montessoriano da educação para a paz e a solidariedade, e reconhecer, como ensinava João Paulo II, que a ciência também precisa ser regida pela cultura do “nós”, não pela do “eu”. A ciência, quando se distancia da ética da fraternidade, corre o risco de tornar-se eficiente, mas desumana. E isso, certamente, não é progresso.