Quando a Universidade Esquece de Ler

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Há um fenômeno silencioso que corrói a universidade por dentro: o desaparecimento gradual da cultura leitora e acadêmica. Mais do que os ataques externos, essa erosão interna ameaça os próprios fundamentos do ensino superior. O que deveria ser espaço de leitura crítica, dedução lógica e construção conceitual profunda vem se convertendo em um conjunto de programas simplificados, adaptados a plataformas rasas e consumidos sem enfrentamento real dos desafios intelectuais. O ensino superior, assim, perde o que lhe é mais característico: a mediação entre tradição e inovação, entre o legado acumulado e a criação de novos conhecimentos.

A origem dessa crise é ampla e extrapola os muros universitários. Vem do culto contemporâneo ao texto breve, da aversão crescente ao esforço de compreensão mais demorada, da educação básica fragilizada e do impacto das redes sociais, que cultivaram um verdadeiro horror ao texto longo e articulado. Porém, quando essa ausência de leitura crítica se instala no cotidiano universitário, suas consequências se tornam mais dramáticas: pesquisa, extensão e projetos acadêmicos diminuem; eventos científicos rareiam; a formação docente esvazia-se de sentido e o estudo se descola de sua vocação formativa mais profunda.

Em meio a esse panorama, cresce a tendência de reduzir o ensino a iniciativas individuais. O professor, isolado, torna-se um animador de plateia, responsável por manter o interesse em um ambiente onde a cultura de estudo perdeu relevância. A pedagogia, sem um horizonte coletivo que lhe dê sentido, transforma-se em um conjunto de estratégias pessoais, improvisadas e muitas vezes orientada mais por modismos do que em princípios sólidos. Todo campo de saber, seja das ciências naturais, biológicas ou humanas, exige um tipo de racionalidade específica, um rigor formativo que não pode ser reduzido à performance individual ou à opinião casual.

Mais do que nunca, impõe-se a necessidade de restaurar o vínculo com a história das próprias disciplinas. Não há formação sólida sem o conhecimento das disputas conceituais que marcaram o surgimento e o desenvolvimento de cada área. Cada campo, mesmo nas ciências exatas e naturais, possui uma trajetória que define suas práticas e seus critérios de validade. Ler essa história não é um luxo erudito: é condição para entender o que se faz hoje e para fundamentar criticamente as escolhas pedagógicas e científicas.

Sem essa base comum — uma cultura leitora, um compromisso com a análise conceitual e textual e um retorno ao percurso histórico dos saberes —, a universidade arrisca perder seu sentido, confundindo-se com formas de ensino tecnicistas e aligeiradas. A crise do rigor não é exclusiva de uma área, nem se resolve por soluções isoladas ou por fórmulas motivacionais de eficácia rápida. Ela demanda o reconhecimento de que cada campo possui culturas próprias, que só se revelam plenamente quando suas tradições são estudadas, discutidas e apropriadas criticamente.

A formação universitária exige mais do que métodos ocasionais ou receitas prontas: exige reconstruir, como um alicerce comum, a cultura acadêmica que permite a existência da universidade enquanto tal. E essa reconstrução passa, necessariamente, pela leitura dos textos fundadores, pela compreensão das lógicas internas dos campos e pelo respeito às histórias que forjaram cada área. Sem isso, o ensino superior perde sua identidade e sua capacidade de formar, não apenas profissionais, mas sujeitos pensantes capazes de articular saberes e transformar a realidade.


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