Sempre, mesmo atuando em tecnologias de informação para o ensino e com boa produção na área, tive restrições sobre esta nova onda de MOOCs que supervaloriza a tecnologia. As minhas restrições são dirigidas a ideia, amplamente difundida, que a utilização de tecnologia é a solução para todos os problemas do ensino. Estas posições são fontes de contravalores criados pela radical racionalidade do que é tido como “ciência e tecnologia”. Ciência e tecnologia podem ser importantes como ferramentas para apoiar modelos pedagógicos, mas nunca a salvação do ensino. Do lado negativo do culto à tecnologia há uma visão de que ela seja a solução para os problemas de difusão do conhecimento e mesmo de geração do conhecimento. Precisamos ter consciência de que a tecnologia é apenas uma ferramenta e se não construirmos valores humanos e éticos estas novas tecnologias não trarão uma ruptura positiva na Educação, mas uma baixa na qualidade da comunicação, do estudo e do comportamento social. Não é possível substituir a Universidade, como fonte de estudo, pensamento filosófico, crítica de valores sociais e humanismo, por ferramentas computacionais. Estas ferramentas podem ser, e são, de grande valia como apoio às atividades de ensino e aprendizado na Universidade. Além disto, têm uma serventia enorme no treinamento em pontos específico e em tecnologias. Eu ainda acredito que uma Universidade deva ser criativa, deve ser a fonte do conhecimento. Uma Universidade deve ser o local onde novas ideias se criam e o local de formação de mentes inovadoras. Para mais detalhes sobre este ponto de vista sugiro a leitura do conto de Isaac Asimov: “Profissão” publicado no livro Nove Amanhãs (Nine Tomorrows). Este conto se desenrola em uma época em que as pessoas têm seu aprendizado reduzido à carga de programas de computador, mas algumas pessoas especiais não podem ter a sua profissão definida desta forma. A seguir o final deste conto.
“No Dia da Instrução, um em cada 100 mil apresenta a desadaptação que você apresentou, e são mandados para lugares como este aqui. Mas, mesmo depois dessa seleção, nove entre dez dos que vêm pra cá não chegam a ser o tipo de material classificável como gênio criativo. Esses nove restantes recebem instrução por fita e acabam se tornando sociólogos registrados, como Ingenescu, ou psicólogos, como eu. O décimo, ele mesmo tem que se revelar”.
“Nós trazemos todos para uma ‘casa para débeis mentais’, e aquele que não consegue aceitar isso é justamente o homem que procuramos. Pode ser um método cruel, mas funciona. Não adianta dizer a um homem: ‘Você é capaz de criar. Crie!’. É bem mais seguro esperar que o próprio homem diga: ‘Eu sou capaz de criar e vou fazê-lo, quer vocês queiram, quer não’. Há apenas 10 mil homens como você, George, que constituem a base para o avanço tecnológico de 1.500 mundos.” … descobre a grande responsabilidade que lhe cabe: inventar as novas fitas de instrução.”
Uma coisa que tem me preocupado ultimamente é o papel da Universidade na sociedade. Será que é preciso mudar ou substituir a Universidade no Brasil? Eu acredito que em alguns aspectos sim, naqueles aspectos ligados à qualidade. Minha visão de Universidade é completamente diferente do utilitarismo e culto à tecnologia atual. A Universidade (olhem o pronome “A”) deve ser um lugar onde o conhecimento universal seja cultuado. Atualmente a mediocridade grassa: uma aluna de Letras disse em aula que Vitor Hugo era o nome de uma bolsa. Que horror! A visão utilitarista atual é que a Universidade deve formar mão de obra para o mercado e não conhecimento. Daí vem o Modelo de Bolonha, na Europa, destinado a reduzir o tempo de permanência dos alunos para que possam ser integrados rapidamente no mercado.
Em uma aula minha, há vários anos, sobre sistemas de informação distribuídos estava discutindo um estudo de caso sobre a integração de dados e a identificação única de pacientes críticos, por exemplo, multitraumatizados em um atendimento de emergência. Neste caso o acesso aos dados clínicos e prontuário é essencial para o atendimento eficaz e rápido e o problema de identificação unívoca é essencial. Contei para os alunos uma discussão que ocorrera em uma reunião de normatização de prontuários médicos na qual ao ponto de vista de representantes dos USA de que pediam para ser utilizado como identificador único o número do telefone ou o da carteira de motorista (até os indocumentados têm carteira de motorista) um representante da Índia disse que isto não se aplicava a grande maioria de pessoas em seu país. Deixei aberta a discussão sobre o problema da modelagem do caso e suas implicações multiculturais, um aluno disse que os que não tinham telefone ou carteira de motorista não interessavam para o sistema de informação, pois não poderiam pagar peles serviços de saúde! Este é o resultado do “objetivismo” de mercado, é uma vergonha do ponto de vista do respeito à dignidade da pessoa.
A ideia que a Universidade seja reconhecida por ser Universidade, uma entidade que merece respeito por ser diferenciada do ponto de vista cultural, é uma mentira hoje em dia. Acredito que as Universidades que não sejam centros de pensamento, de cultura, de contestação e de humanismo devem se tornar centros de formação de mão de obra, chamem com quiserem, mas não são Universidades. Atualmente os MOOCs são uma ferramenta destinada a destruir o multiculturalismo e a gerar a padronização da formação de mão de obra. Uma ferramenta de treinamento e não de formação.
O assunto é tratado no artigo “In the Year of Disruptive Education” (CACM, v. 55, n. 12, p. 20-22) onde é descrito claramente que “Everyone talks about the rising cost of health care”, says Baraniuk, “but it turns out that the cost of education is rising considerably faster. Student debt just crossed $1 trillion in the U.S. and it is the number one form of debt now outside of mortgages” [Todo mundo fala sobre o aumento do custo dos cuidados de saúde, diz Baraniuk, mas verifica-se que o custo da educação está aumentando consideravelmente mais rápido. Dívida dos estudantes recentemente ultrapassou $ 1 trilhão nos EUA e é agora a dívida número um, fora as hipotecas].
Está claro que a motivação da oferta de cursos Curso Online Abertos e Massivos é um problema financeiro, eles (USA) estão apavorados com a magnitude da dívida educacional. Se esse problema não for resolvido rapidamente há um risco enorme e sistêmico de um desmoronamento do sistema educacional. Seria algo semelhante ao que aconteceu – a bolha – com os empréstimos imobiliários e, depois, com os bancos.
É preciso entender o que é uma Universidade, como já discuti acima. Há bastante tempo publiquei uma crônica sobre “Dêem Tempo para a Universidade Pensar ou os modelos de Universidade” onde já tratava do assunto. Recentemente voltei ao mesmo assunto, mas o tema é recorrente. Vou copiar, novamente, parte daquele texto.
“A university is an institution of higher education and research, which grants academic degrees at all levels (bachelor, master, and doctorate) in a variety of subjects. … The word university is derived from the Latin Universitas Magistrorum et Scholarium, roughly meaning “community of masters and scholars“. Wikipedia
[A Universidade é uma instituição de ensino superior e de pesquisa que concede graus acadêmicos em todos os níveis (graduação, mestrado e doutorado) em uma gama de temas. … A palavra universidade é derivada do latim Universitas Magistrorum et Scholarium, que significa “comunidade de mestres e acadêmicos”.]
Então uma Universidade deve ser o ponto de encontro de Mestres e Acadêmicos ou Pensadores. A Universidade foi, desde sua criação, um local de pensamento, de tempo para a análise crítica, para o desenvolvimento de novos conceitos. Não é por acaso que as ditaduras sempre atacam as universidades seja pelo seu fechamento, seja pela instituição de comissários políticos, ou encarregados da “segurança interna” do SNI. Apenas recentemente a disciplina de Filosofia, proibida durante a ditadura militar brasileira, foi reintroduzida no secundário. Em minha Universidade, a UFRGS, professores eminentes da Faculdade de Filosofia, como o Prof. Ernani Maria Fiori, tiveram que se exilar, pois pensar e filosofar era contrário aos “ideais” da ditadura. Infelizmente agora o outro extremo político reinaugurou a politização nas Universidades e grupos violentos criam situações de constrangimento e de medo como os casos ocorridos na UNICAMP e em outras instituições, triste para quem acreditava na evolução acadêmica da Universidade no Brasil. Não querem opiniões divergentes, são radicais e sectários. Em um ambiente de liberdade há espaço para novas ideias e para a abertura de novos horizontes, este é o modelo de Universidade Humboldtiana, a Alemanha criou este modelo nos 18’s e obteve, no início do século XX, uma das maiores concentrações de Prêmios Nobel. Este trecho (em português de Portugal) é essencial para a compreensão do que seja uma Universidade:
“A fundação da universidade de Berlim por Humboldt foi uma “success story”. O seu modelo foi rapidamente adoptado em toda a Alemanha, e, mais tarde, viria a exercer uma influência decisiva na concepção das grandes universidades norte-americanas, como Harvard ou Yale – que são, na sua essência, coisa que muita gente ignora, universidades humboldtianas. O princípio central da idéia humboldtiana de universidade é a famosa “unidade indissolúvel do ensino e da investigação”. Isto significa que a matéria a ensinar é, idealmente, um saber adquirido em primeira mão pelo docente na qualidade de investigador. Uma tal ideia tem óbvias implicações práticas ao nível dos calendários escolares e horários, ou seja da gestão do tempo consagrado ao ensino e à investigação. Só o docente que tiver tempo para investigar, e para se informar do “state of the art” na sua área, poderá desenvolver um ensino de carácter verdadeiramente universitário. Dois outros princípios importantes deste modelo de universidade são o da liberdade do ensino e da aprendizagem e o da necessária maturidade e autonomia do estudante universitário. O primeiro diz respeito não apenas à liberdade do docente e investigador na escolha das matérias em que se especializa, mas igualmente à liberdade de escolha, pelo estudante, do seu próprio percurso de aprendizagem, o que implica, na prática, a existência de disciplinas de opção livre e um sistema de major e minor.”
urbi et orbi. José Manuel Boavida Santos
Por este trecho pode-se perceber que isto é A Universidade. Não um penduricalho de empresas, mas uma fonte de estudo, conhecimento e sabedoria. Não estou propondo o fim da pesquisa aplicada, estou apenas dizendo que as Universidades “pragmáticas” na formação de mão de obra serão centros de treinamento, como no conto de Asimov, para as empresas. Não podemos nos esquecer do papel essencial da Universidade que deve considerar muitos aspectos humanos:
“Study of the social dimensions of scientific knowledge encompasses the effects of scientific research on human life and social relations, the effects of social relations and values on scientific research, and the social aspects of inquiry itself. Several factors have combined to make these questions salient to contemporary philosophy of science. These factors include the emergence of social movements, like environmentalism and feminism, critical of mainstream science; concerns about the social effects of science-based technologies; epistemological questions made salient by big science; new trends in the history of science, especially the move away from internalist historiography; anti-normative approaches in the sociology of science; turns in philosophy to naturalism and pragmatism. This entry reviews the historical background to current research in this area, features of contemporary science which invite philosophical attention, the challenge to normative philosophy from social, cultural, and feminist studies of science, and the principal philosophical models of the social character of scientific knowledge”.
Longino, Helen, “The Social Dimensions of Scientific Knowledge”
The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2011 Edition), Edward N. Zalta (ed.)
URL = http://plato.stanford.edu/archives/spr2011/entries/scientific-knowledge-social/.
Ou em Português: a união da pesquisa científica com o Humanismo e com os valores éticos e morais. Está na hora de darmos um basta à visão meramente econômica da sociedade e percebermos que este materialismo está nos levando para a atual crise moral e ética. Não vou trazer aqui exemplos, pois todos estão a par da vergonha do comportamento de pessoas públicas, no Brasil, Itália e Espanha, por exemplo. Para concluir mais uma citação sobre os contravalores:
O endeusamento da ciência e da técnica na América Latina são fontes de contravalores pela radical racionalidade do que é tido como “ciência” e pela eficiente práxis aceita com foros de “técnica”(Lopes, 1982). No mesmo trabalho, o autor aponta a ausência de um sentido transcendental e humanizador de ambas, o que as deixa a serviço das mais disparatadas e controvertidas finalidades. Nem a ciência nem a técnica podem manter-se neutras, isto é, alheias à finalidade dos valores do ser humano. Ciência e técnica necessitam ser repassadas de cultura, o que as impedirá de se servirem do ser humano como meio para atingirem seus fins. Cabe-lhes, primordialmente proporcionar ao ser humano os meios para a mobilização do seu potencial de inteligência, de afetividade e de vontade, para que valorize o sentido da sua vida e tudo o que percebe.
Armando Marocco S.J. – Ph.D. “Construindo Valores”, 2008
Precisamos incluir mais Humanismo e Filosofia em nossos cursos para tentarmos, a médio prazo, dar um basta na atual crise moral e ética que vivemos. A violência do nosso dia a dia e a mórbida valorização dos meios de comunicação pelos aspectos mais degradantes da natureza humana é mais uma faceta desta falta de perspectiva de Humanismo. A Universidade não deve ser uma máquina de formação rápida de mão de obra, mas deve dar uma formação profissional e ser, em paralelo, uma fonte de estudo e de meditação sobre o valor humano e ético de nossos trabalhos e atitudes.