Como venho tratando sobre a qualidade e a competição em nossos programas de pós-graduação e, também, em nossos cursos de graduação, fica cada vez mais clara minha percepção de que a competição e individualismos exagerados vêm corrompendo nossos ambientes de trabalho. Já em 2016 tinha publicado sobre o tema em “Individualismo, Criatividade, Cooperação e Avaliação“, naquele texto analisei a mudança da cooperação para a competitividade excludente e relacionei isso com o livro do Domenico Masi “A Emoção e a Regra, os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950“. Agora recebi um post sobre uma iniciativa da Universidade de Ghent sobre financiamento básico não competitivo de pesquisa. Está mais do que na hora de começarmos a tratar as consequências negativas desta competição desenfreada, já em 2011 publicamos um artigo mostrando que a cooperação entre os pesquisadores de um programa de pós-graduação está diretamente relacionada com sua avaliação pela CAPES. Aqui vou repetir duas citações que considero essenciais, e de duas pessoas com alinhamentos ideológicos diferentes:
Não é a cultura do egoísmo, do individualismo, que frequentemente regula a nossa sociedade, aquela que constrói e conduz a um mundo mais habitável, mas sim a cultura da solidariedade; ver no outro não um concorrente ou um número, mas um irmão. Papa João Paulo II
Geramos um monstro que nos devorará. Este monstro chama-se soberba, insolência, egoísmo feroz. José Saramago
Uma primeira ação na luta contra este modelo excludente seria o oferecimento de um financiamento de base para os pesquisadores, não sem responsabilidade, mas exigindo alguns critérios anteriores como estes colocados pela Universidade de Ghent:
O que exatamente se entende por “professores ativos em pesquisa”? Para que as suas atividades de investigação se qualifiquem para financiamento básico, o corpo docente deve satisfazer as três condições seguintes:
- Solicitaram financiamento externo para investigação nos últimos três anos;
- O docente possui publicações nos últimos três anos;
- O docente tenha sido orientador de doutorado nos últimos três anos (seja de doutorado em andamento ou já concluído).
O financiamento da pesquisa é uma parte fundamental do ecossistema acadêmico e científico, muitas vezes operando dentro de um sistema competitivo. Essa abordagem competitiva tem várias vantagens notáveis. Ela incentiva a excelência, garantindo que os recursos sejam direcionados para os projetos mais promissores e relevantes, com potencial para avançar o conhecimento e abordar desafios significativos. Além disso, a competição pode estimular a inovação, já que os pesquisadores buscam desenvolver propostas que se destaquem entre seus pares.
No entanto, é cada vez mais evidente que esse sistema competitivo tem suas desvantagens e que o equilíbrio entre competição e cooperação pode estar se desfazendo. A concorrência excessiva, em particular, pode gerar consequências negativas. Os instrumentos tradicionais de financiamento muitas vezes acentuam essa competição, dificultando a colaboração entre pesquisadores. A pressão para obter financiamento pode levar a um foco excessivo em projetos individualistas em detrimento de abordagens interdisciplinares que frequentemente são necessárias para abordar questões complexas e multifacetadas.
Além disso, o processo de candidatura para financiamento é notoriamente trabalhoso e exigente. Os pesquisadores precisam dedicar uma quantidade significativa de tempo e esforço para desenvolver propostas detalhadas e competitivas. No entanto, devido às altas taxas de rejeição em muitos programas de financiamento competitivos, a realidade é que a maioria das propostas não será bem-sucedida. Esse cenário pode levar à frustração e desmotivação entre os pesquisadores, que podem começar a questionar o valor de seus esforços.
A concessão de financiamento básico estrutural apresenta uma alternativa a esse cenário. Ao fornecer financiamento de base para professores e suas equipes, as instituições estão transmitindo uma mensagem de confiança em sua capacidade de realizar pesquisa relevante e de alta qualidade. Isso tem o potencial de criar um ambiente mais saudável, onde os pesquisadores não estão constantemente sob a pressão de buscar financiamento para cada projeto. Em vez disso, eles têm espaço para se concentrar em questões de pesquisa mais substanciais, que podem não se encaixar nos moldes tradicionais de financiamento competitivo.
O resultado desse tipo de financiamento é duplamente positivo. Primeiro, ele tem um efeito motivador, permitindo que os pesquisadores se dediquem mais profundamente a seus estudos sem a ansiedade constante pela próxima rodada de financiamento. Segundo, ele promove a liberdade intelectual, incentivando pesquisas mais criativas e inovadoras, que podem levar a descobertas e avanços de longo prazo.
A questão não é eliminar a competição, mas sim restaurar um equilíbrio saudável entre competição e cooperação. Ao adotar abordagens que aliviam a pressão constante por financiamento competitivo, as instituições podem permitir que os pesquisadores prosperem, colaborando mais efetivamente e perseguindo ideias de pesquisa que podem ter um impacto duradouro na sociedade e no progresso científico.
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