Não esperem algo inspirado em Rousseau, esta crônica é mais uma análise da história de nossas Universidades Públicas nestas últimas décadas; em particular de minha Universidade. O título procura mostrar que o conteúdo é muito mais decorrente da minha vivência pessoal do que de uma análise acadêmica baseada em dados quantitativos e análise formal. Mas considero que as experiências vividas devem ser analisadas com muito cuidado pela sua real contribuição. As análises, mesmo as ditas metodológicas e rigorosas, sempre tem o direcionamento ideológico dado pela seleção dos dados a serem analisados. Uma seleção de dados implica, sempre, em uma posição do analista. Apenas recentemente o conceito de big data tem permitindo que algoritmos “a la Google” processem gigantescos volumes de dados sem a seleção prévia dos mesmos. Mas ainda neste caso a interpretação das regras descobertas necessita da compreensão e da interpretação humana, que não é isenta da visão de mundo do pesquisador. Desta forma minha contribuição para a compreensão da evolução da Universidade no Brasil, e em particular da área da Computação, concentra-se na narração de um a experiência pessoal e de sua interpretação.
Mas qual o motivo desta crônica? Estou me propondo fazer uma análise crítica das conquistas obtidas e dos desafios a que estamos sendo submetidos. Para podermos projetar o futuro é importante que compreendamos o caminho que nos levou à situação atual. Da mesma forma que o processo de análise psicológica permite a uma pessoa conhecer melhor sua mente, seus problemas e enfrentar as causas de suas dificuldades as instituições precisam desta análise profunda e crítica. Uma instituição não sendo um ente racional não possuía esta capacidade, apenas seus membros podem fazer uma análise de suas experiências.
Os primórdios da computação na Universidade
Vamos começar a análise pelo relacionamento da Universidade com seus professores. Quando eu era aluno da Escola de Engenharia da UFRGS a grande maioria das pessoas considerava que um bom professor de engenharia era “um profissional de engenharia bem sucedido” que vinha “ensinar” para os alunos como se procedia na vida prática. Isto porque este profissional “sabia como se fazem as coisas”. Os poucos, ou pouquíssimos que só estavam ligados ao ensino eram chamados de “leitores de livros”. Tive um professor que repetia fastidiosamente um livro sobre máquinas elétricas, há anos, o melhor aluno (para este professor) era um colega que acompanhava pelo livro e funcionava como “ponto” ditando as variáveis que o mestre se esquecia… A inovação era nula. Isto começou a mudar quando alguns, poucos, professores da Engenharia Elétrica voltaram de um mestrado no ITA e passaram a dar ótimas aulas, com fundamentos consistentes. Estes professores foram a minha motivação para gostar da pesquisa. Junto com o Instituto de Física, naquela época um dos poucos locais da Universidade onde havia pesquisa, estes professores ofereceram cursos extras de matemática e fundamentos de física para eletrônica (era o início dos semicondutores). Isto porque os professores ditos “práticos” nem conseguiam entender o que era uma transformada de Laplace.
Alguém acha que poderíamos querer ter indústria competitiva, ou qualquer tipo de importância no cenário internacional? Naquela época entrava-se para a Universidade por convite do “catedrático”. Eu já estava entusiasmado pela pesquisa e passei a ensinar, só ensinar, no Departamento de Física e Matemática da Escola de Engenharia. No primeiro ano uma especialização em Análise Matemática, o que me valeu até hoje. Muito depois vieram os concursos em que fui aprovado para Professor Assistente e para Professor Titular. Ai vocês já vem o problema da época, eram engenheiros ministrando aulas de Física e de Matemática, só podia ser transmissão de conhecimento. Logo surgiu o regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva – RETIDE – e fui dos primeiros a estar todo o tempo na Universidade. Naquela época quando alguém perguntava: “Onde trabalhas?” e a resposta era: “Na Universidade!” vinha logo: “Sim, dás aula, onde trabalhas mesmo?”. A Universidade era um “bico”, um complemento extra de outras atividades.
O ambiente era basicamente estudar os livros, não havia a biblioteca na Web da CAPES, aliás ainda não haviam inventado a Web, e as revistas disponíveis que eram limitadíssimas. Quando vinha um raro professor de uma Universidade no exterior só tínhamos a possibilidade de escutar o que faziam lá e nos atualizarmos. Ainda hoje há muitos colegas, que apesar das mudanças (que veremos a seguir) continuam com a visão colonial de que somente as publicações no exterior são boas. Um dos poucos mestrados disponíveis próximos da área era o de Física Experimental, me inscrevi no mesmo. Alguns colegas saíram para fazer mestrados no Rio de Janeiro. Não havia sequer um Doutorado em Computação no Brasil e acredito que os dois mestrados disponíveis eram os da UFRJ e da PUC do Rio. Quando voltaram foi iniciado o Mestrado em Ciência da Computação, uma associação entre o Centro de Processamento de Dados e o Instituto de Física. Notem a peculiaridade desta associação: de um lado um órgão técnico da Universidade, que era responsável pelas aulas de Computação e pelo outro um Instituto de Ensino e Pesquisa. Ainda era a visão de que “quem faz sabe, quem não faz ensina” no lado da Computação/Engenharia. Mudei para o novo mestrado. Notem que naquela época alguém um professor com mestrado era credenciado como professor de Pós-graduação em nível de Mestrado!
A evolução
Mas as coisas começaram a mudar, iniciamos a desenvolver projetos, alguma pesquisa começou. Nesta época o grupo de Banco de Dados, em um projeto conjunto com a Alemanha, desenvolveu do zero um SGBD, o MINIBAN. Começamos a ter competências mais formais e a ter capacidade de desenvolver tecnologia com base conceitual sólida. Neste ponto começaram as publicações destes resultados. No início no Brasil, depois na Argentina e Chile que eram consideradas publicações “internacionais”. A próxima etapa foi a formação dos professores em nível de doutorado, fizemos uma escala de saída e praticamente todos foram, os primeiros para o Rio de Janeiro, os demais para o exterior. Ai as coisas se aceleraram, a pesquisa ganhou fôlego, a inserção internacional aconteceu e a exigência de qualidade atingiu níveis compatíveis com o cenário mundial. O processo de avaliação da CAPES, para Instituições, e do CNPq para pesquisadores atingiram um ponto em que são referências mundiais. Hoje para entrar como professor em nosso grupo (e nos grupos de excelência no Brasil) o mínimo exigível é o doutorado e boa demonstração de produção. Nossos alunos de doutorado praticamente sempre tem um período de um ano de trabalho em laboratório no exterior e tem boas publicações. Parece que a guerra foi ganha. Inserção internacional, trabalhos de qualidade, reconhecimento pelos melhores centros de pesquisa no mundo como parceiros de qualidade.
A crise
Agora surgem os fantasmas, a Alemanha desenvolveu um processo de competição e selecionou um número reduzido de Universidades para serem os centros de excelência. Uma Universidade Huboldtiana (ver) é cara, mas essencial para a formação de um núcleo de pesquisadores de alta qualidade. Criou-se no Brasil um mito de que uma Universidade para ser boa deveria seguir o modelo criado por Humboldt de associação estreita entre pesquisa e ensino. Muitas Universidades que não têm condições para implantar este modelo de alto custo se sentem inferiorizadas se forem consideradas como Universidades de Ensino. É preciso ter clara a visão que tanto uma Universidade de Pesquisa como uma Universidade de Ensino são essenciais se forem de ótima qualidade e não vendedoras de títulos acadêmicos.
Por outro lado foi criada a visão errônea de que a ascensão social é feita pelo título universitário. Esta percepção foi desenvolvida por uma interpretação inadequada de qual é a variável independente. Nos tempos em que comecei a descrever o processo de qualificação da Universidade as famílias de maior nível econômico tinham seus membros com títulos universitários. Criou-se a visão de que era a titulação a variável independente, mas na realidade é o contrário que acontece: eles tinham os títulos acadêmicos por terem recursos financeiros para enviá-los e mantê-los na Universidade. A conclusão foi: “Devemos abrir as portas a todos para que entrem na Universidade, assim poderão ter a desejada ascensão social”. Mas um título acadêmico de uma Universidade fraca ou um título acadêmico em uma boa Universidade de um estudante fraco hoje não serve para nada.
Como escreveu José Goldenberg:
“Daí a necessidade de manter universidades de alto nível, isto é, centros de estudos, pesquisas e inovação, como é feito na Europa há quase mil anos. São as grandes universidades de hoje, algumas delas no Brasil, que produzem as novas ideias e novas tecnologias que vão dar, amanhã, origem a empreendimentos comerciais, e não o contrário. É uma ilusão esperar que elas, por si sós, modernizem o sistema produtivo, mas precisam estar preparadas para responder às demandas da sociedade. É por essa razão que qualquer medida que leve à redução da qualidade e do potencial das universidades brasileiras, como a criação de cotas raciais, por exemplo, é equivocada”
Universidade não é o local para a recuperação de dívidas históricas e sociais, por mais válidas que sejam estas dívidas. Minha posição é que estamos enfrentado uma das maiores crises da Universidade Brasileira, pois nossos políticos não estão tratando do essencial do problema. A causa principal é que deixamos o ensino público decair, pagamos muito mal aos nossos professores do Fundamental e do Médio. Voltando ao início da crônica, nos anos 60 e 70 não havia grande diferença entre os alunos que ingressavam na Engenharia vindos do ensino público ou do particular. Um ótimo colégio público de Porto Alegre, o Julho de Castilhos ou Julinho, era um dos grandes formadores das lideranças gaúchas. O tempo passou e o ensino básico público foi sucateado. Recentemente entrou um aluno cotista com UM acerto em matemática na Engenharia, depois melhoraram um pouco os critérios. Por mais esforços que sejam feitos não há como recuperar este déficit em Ciências Exatas na Universidade.
Pior se passa em Português, a capacidade de abstração e de representação de conceitos precisa se desenvolver ao longo dos anos. Em um destes programas de “universalização” querem impor uma taxa de conclusão de 95% dos ingressantes, só se for implantada a progressão continuada, sem possiblidade de reprovação na Universidade, pois precisaríamos de cerca de 0,99% de aprovação em cada disciplina para atingir esta meta final. Esqueceu-se o princípio da qualidade e do esforço pessoal. Alguém disse que a famosa frase de Churchil: “Blood, Toil, Tears and Sweat” foi convertida no Brasil para “Carnaval, Cerveja e Suor”. Mas a reabilitação do Ensino Público não está na agenda de políticos que tem como horizonte a próxima eleição.
A solução
Minha proposta é que a solução está em dar condições plenas para cada um de acordo com sua capacidade e esforço. A solução para a recuperação de dívidas históricas e sociais da Sociedade deve ser real e não uma tentativa superficial de oferecer acesso à Universidade. Isto (a possibilidade de efetuar estudos até o mais alto nível de sua capacidade) deve ser independente da situação socioeconômica da família do estudante. O Ensino Público Fundamental e Médio precisa ser valorizado. Em nosso estado, RS, dão-se incentivos fiscais para fábricas de cigarro e para a plantação de fumo, mas não para o Ensino. Os alunos devem ser motivados e acompanhados desde o início dos estudos e os mais dedicados e com maiores resultados devem receber o apoio do Estado para irem para as melhores Escolas. Se inicialmente não for possível levar todas as Escolas do Ensino Público a um patamar mais elevado devem ser escolhidas as mais promissoras como Centros de Excelência. Todos, devem ter a possibilidade de atingir, com apoio educacional adequado para suprir as deficiências decorrentes de um meio desfavorecido, o nível mais alto a que puderem e para o qual se esforcem e tiverem capacidade.
Constituição do Brasil
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
... ”.
Para assegurar esta igualdade os meios financeiros devem ser alocados a todos alunos que demonstrem qualidade e desempenho sem distinção de qualquer natureza. Cada um deve ser exclusivamente dependente de sua capacidade e esforço e não de suas condições econômicas ou sociais para progredir. Minha visão é que é obrigação do Estado de dar estas condições.
Adendo para os dias de hoje
Hoje há algo que me preocupa é um retorno para aquela visão inicial de práticos ensinando: há cursos fazendo a propaganda de serem muito orientados para o mercado. Seus professores são pessoas que atuam no mercado e seus alunos teriam uma inserção rápida. Isto é um retorno aos tempos antigos? Acredito que é uma consequência da crise no trabalho e uma falta de competitividade das empresas brasileiras. Certamente esta formação é uma orientação tecnológica para empresas locais e sem competitividade internacional. Certamente os egressos destes cursos não são os candidatos para trabalhar em um Google, Facebook ou empresas realmente competitivas. Nem serão capazes de criar novas empresas de tecnologia de ponta no mercado mundial. Certamente devem existir IES com orientação tecnológica orientadas para o mercado, mas devem existir centros de excelência para a formação dos futuros líderes do mercado.