A versão inicial deste texto foi redigido em 2007, agora com a publicação dos resultados parciais do ENADE resolvi atualiza-lo e republicar. Estou propondo uma meditação sobre a Universidade brasileira. As minhas perguntas centrais são: Qual deve ser a essência de uma Universidade? O que se passa com o modelo brasileiro de Universidades? Publicações motivaram inicialmente este texto, a primeira foi um artigo publicado pela Agência FAPESP em 2007 com uma entrevista do pesquisador norte-americano Philip Portoghese, da Universidade de Minnesota que caracteriza uma Universidade de Pesquisa:
… um dos mais conhecidos especialistas em química medicinal no mundo, considera que a principal tarefa do pesquisador acadêmico não é desenvolver produtos, mas criar novos conceitos. Ele disse na entrevista: “Nosso objetivo maior hoje, na universidade, não é descobrir medicamentos, mas desenvolver novas abordagens e conceitos para a produção de fármacos. Precisamos aproveitar aquilo que temos e que falta aos pesquisadores das empresas. A universidade tem tempo para pensar e este é seu trabalho”.
Depois, outra foi um relatório do MEC com estatísticas sobre o incrível aumento no número das Universidades brasileiras, dos mais diferentes tipos, e sobre as vagas ociosas. Esta queda de inscrições nas vagas disponíveis será muito maior no futuro, basta ver os dados do IBGE n figura a seguir, onde está evidente a enorme queda da taxa de fecundidade no Brasil. Uma previsão desenvolvida no estudo “Indicadores Sociodemográficos Prospectivos para o Brasil 1991-2030“, indica que a taxa de fecundidade, na média do País, cairá para 1,59 filhos por mulher em 2030, ante 6,3 filhos por mulher em 1960.
Fig. 1 – Taxa de Fecundidade no Brasil
O resultado desta queda de natalidade e do aumento da oferta de vagas é que:
Em 1990, as posições não ocupadas nos cursos eram 18,6% do total no caso das instituições públicas e 19,2% nas privadas. Em 2003, estavam ociosas 42,2% das vagas das universidades particulares, enquanto nas públicas a ociosidade era de apenas 5%.” (Revista Desafios do Desenvolvimento).
E olhem como piorou a situação, antes da COVID-19.
Ociosidade das vagas no Ensino Superior no Brasil
Foto: Dados: Inep/MEC Elaboração: Quero Bolsa
Se juntarmos estes dados é possível perceber que o de crescimento está esgotado. Aquelas pessoas com condições socioeconômicas básicas já estão na Universidade, para aumentar a percentagem de matriculados, da da população dos 18 aos 24 anos, para 30% fixados no Plano Nacional de Educação será necessário um investimento muito grande. Faltam 19,1%, ou seja um aumento de 175% nos alunos matriculados. Quem conhece o público atual nas Universidades não acredita que isto seja possível.
Vejamos dados da OCDE sobre o exame PISA (OECD Programme for International Student Assessment) aplicado a jovens de 15 anos, olhem o horror da figura a seguir!
Fig. 2 – OCDE, Pontuação no Exame PISA, 2012
Alguém acredita que é possível aumentar radicalmente o número de alunos nas Universidades se a formação anterior é tão ruim? Seria mandá-los para a Universidade para nada, quem sabe se para obter um diploma bonito mas sem conteúdo. É preciso um enorme esforço nos estágios iniciais de formação. Felizmente o FUNDEB acaba de ser aprovado, é um primeiro passo, mas que levará anos para apresentar resultados, neste meio tempo a queda na natalidade diminuirá os efetivos aptos a entrarem na Universidade.
Conclusão: não há como evitar uma crise no atual modelo de ensino superior. Precisamos de alternativas, de um modelo capaz de enfrentar esta realidade. Precisamos planejar o futuro, é necessário que façamos uma reflexão sobre o que se passará com as Universidades nas próximas décadas. A primeira atitude deve ser a realização de encontros do tipo “Grandes Desafios da Década em CC“, patrocinado pela SBC, mas agora centrado na área do Ensino. Se não agirmos a crise atual será amplificada com resultados sérios para toda a comunidade acadêmica e para o Brasil.
Certamente os comentários que escrevo para a Computação são válidos para as demais áreas, respeitadas as suas peculiaridades. Para os cursos muito bem posicionados a situação é bastante confortável. Em artigos sobre ensino nos países centrais se encontram frases como estas: “Na Universidade o aluno tem que aprender a aprender...”, “Mesmo em feriados como o Natal e Ano Novo é possível encontrar alunos nos laboratórios“, “Dificilmente uma pessoa que não se dedique à pesquisa em tempo integral conseguirá concluir o trabalho de doutorado aqui“, “Nossa intenção é formar profissionais com uma base muito forte que consigam sempre se atualizar sozinhos“. Este é o grupo de Universidades que forma os pesquisadores com capacidade de competição internacional. Este modelo de Universidade de ensino e pesquisa é essencial para a competitividade brasileira mas precisa ser complementado por um amplo espectro de outras formações.
Minha proposta, já apresentada em texto anterior, é um modelo completo de Ensino com cursos técnicos secundários, cursos tecnológicos superiores, universidades tecnológicas, universidades de ensino e universidades Humboldtianas, ou de pesquisa. Neste modelo de ensino o processo de avaliação de qualidade dos cursos deve ser diferente para cada tipo de curso. Olhem os dados do ENADE, em uma avaliação em que 15% eram públicas e 85% privadas, na avalição geral as públicas foram 81,4% classificadas no nível máximo de 5 e as privadas em apenas 18,6%. Entretanto no IDD (Indicador de Diferença entre os Desempenhos Observado e Esperado) 28,1% são públicas e 71,9% privadas. É claro que ai se identificam universidades de pesquisa e as universidades de ensino.
Vou discutir aquilo que entendo deva ser uma Universidade no significado essencial da palavra:
A university is an institution of higher education and research, which grants academic degrees at all levels (bachelor, master, and doctorate) in a variety of subjects. A university provides both tertiary and quaternary education. The word university is derived from the Latin Universitas Magistrorum et Scholarium, roughly meaning “community of masters and scholars”. Wikipedia
Então uma Universidade tradicional deveria ser o ponto de encontro de Mestres e Pensadores. A Universidade foi, desde sua criação, um local de pensamento, de tempo para a análise crítica, para o desenvolvimento de novos conceitos. Não é por acaso que as ditaduras sempre atacam as universidades seja pelo seu fechamento, seja pela instituição de comissários políticos, ou encarregados da “segurança interna”. Em um ambiente de liberdade há espaço para novas ideias e para a abertura de novos horizontes, este é o modelo de Universidade Humboldtiana, a Alemanha criou este modelo nos 18‘s e obteve, no início do século XX, uma das maiores concentrações de Prêmios Nobel. Este trecho (em português de Portugal) é essencial para a compreensão do que seja uma Universidade:
A fundação da universidade de Berlim por Humboldt foi uma success story. O seu modelo foi rapidamente adotado em toda a Alemanha, e, mais tarde, viria a exercer uma influência decisiva na concepção das grandes universidades norte-americanas, como Harvard ou Yale – que são, na sua essência, coisa que muita gente ignora, universidades humboldtianas.O princípio central da idéia humboldtiana de universidade é a famosa “unidade indissolúvel do ensino e da investigação”. Isto significa que a matéria a ensinar é, idealmente, um saber adquirido em primeira mão pelo docente na qualidade de investigador. Uma tal ideia tem óbvias implicações práticas ao nível dos calendários escolares e horários, ou seja da gestão do tempo consagrado ao ensino e à investigação. Só o docente que tiver tempo para investigar, e para se informar do state of the art na sua área, poderá desenvolver um ensino de carácter verdadeiramente universitário. Dois outros princípios importantes deste modelo de universidade são o da liberdade do ensino e da aprendizagem e o da necessária maturidade e autonomia do estudante universitário. O primeiro diz respeito não apenas à liberdade do docente e investigador na escolha das matérias em que se especializa, mas igualmente à liberdade de escolha, pelo estudante, do seu próprio percurso de aprendizagem, o que implica, na prática, a existência de disciplinas de opção livre e um sistema de major e minor.” urbi et orbi, José Manuel Boavida Santos.
Domenico De Massi [Criatividade, Capítulo nove, O Homem descobre a criatividade e descobre o futuro, Domenico de Massi, Editora Sextante, Rio de Janeiro, 2002], trata da criação de novas alternativas, livres das limitações da materialidade da descoberta. No capítulo nove de seu livro Criatividade escreve De Massi: “… A descoberta é limitada por alguns vínculos : … . Já a invenção, pelo contrário, pode prosseguir por infinitas direções, pode abrir infinitos campos e pode seguir infinitos caminhos: tanto os objetivos quanto os itinerários são ilimitados“. Continuemos pela literatura, este trecho de um artigo na área da Filosofia é relevante por trazer o problema a dualidade entre o imediato e o ideal futuro.
No “Prólogo ao teatro” que abre o Fausto, Goethe sintetizou as implicações que esta dualidade acarreta, ao opor o poeta e sua recusa a toda concessão mundana da poesia, ao diretor e ao bufo, um e outro atentos às expectativas do público — mencionado aqui, significativamente, como die Masse. Assim, após a reivindicação do primeiro em endereçar-se apenas a um público ainda inexistente — pois “O que brilha nasceu para o instante/ O genuíno permanece eterno no mundo-adiante (Nachwelt)” —, e o diretor retruca com esta questão brutal: “Pensai: para quem escreveis?“. Cassirer e Sartre sobre o esclarecimento, Vinicius de Figueiredo, Kriterion vol.46 no.112 Belo Horizonte Dec. 2005.
As três citações acima abordam o mesmo problema: o imediatismo versus o permanente, a corrida pelo dia a dia contra o pensamento buscando o estável, a descoberta de coisas práticas contra a análise embasada e consistente que vai perdurar. Trazendo isto para nossa vida de professores encontramos a pergunta de final de ano: “Pensai: que Universidades queremos?“. Estamos frente ao mesmo dilema apresentado em Fausto: ou uma Universidade para o público atual e para os interesses empresariais atuais “O que brilha nasceu para o instante” ou uma Universidade para abrir horizontes “O genuíno permanece eterno no mundo-adiante“. Neste texto vou procurar discutir as duas alternativas. No passado, como descrevia antes, as Universidades eram centros de pensamento e criação do futuro. O desenvolvimento e complexidade das tecnologias criou uma nova necessidade: a formação de pessoal tecnicamente competente e com suficiente formação para trabalhar com estas tecnologias. No Renascimento e na Idade Média as grandes realizações era as catedrais e os palácios, todos construidos por artesãos, o conceito de Arquitetura somente surgiu com Filippo Brunelleschi perto de 1430 em Florença. Tudo era feito por experiência e prática, o mundo mudou. Precisamos, portanto, de modelos diferentes e complementares de Universidades e de formas de ensino.
As Instituições de Ensino Superior precisam oferecer seus cursos com a informação clara da categoria de ensino em aluno está se matriculando. Alguns cursos são orientados para a continuação da formação em pós-graduação após sua conclusão, outros para a entrada no mercado com uma posterior alternativa de pós-graduação tecnológica e, finalmente, outros são cursos terminais sem a base formal necessária para uma pós-graduação. Os candidatos precisam escolher conscientemente qual caminho podem, economicamente e por sua formação anterior, e que querem seguir. É impossível que todas as Universidades disponham de recursos para atingirem o ideal Humboldtiano. Para mim esta é a origem da crise, houve falta de análise crítica do modelo a ser seguido e foram criadas uma enormidade de Universidades sem a consciência clara do modelo a ser seguido. Uma Universidade precisa ter uma Ética rigorosa em sua divulgação e propaganda. Não é ético oferecer esperanças, que não poderão ser cumpridas, para os ingressantes somente para conseguir alunos ou atender interesses eleitoreiros.
Voltando ao assunto do início deste texto a discussão entre a competência de pesquisa de um lado com capacidade de formação profissional empresarial de outro! São duas dimensões diferentes e nossa missão na Universidade, no meu ponto de vista, é a formação acadêmica profissional, por um lado, e para a pesquisa por outro. É muito difícil unir as duas competências com base em formação universitária. Para usar uma analogia: alguém pode ser um ótimo acadêmico em música, mas, se não nascer com o dom do virtuoso, nunca chegará a ser um músico (executante) de primeira ordem. Estas são características diferentes, alguns poucos unem as duas. Na Universidade devemos trabalhar a dimensão que nos é essencial: a qualidade acadêmica, a formação de recursos humanos.
Do ponto de vista do ensino é preciso um modelo completo com cursos técnicos secundários, cursos tecnológicos superiores, universidades tecnológicas e universidades Humboldtianas. Neste modelo de ensino o processo de avaliação deveria ser diferente para cada tipo de curso e com a informação clara do tipo de curso em que o aluno está se matriculando. Alguns cursos são orientados para a continuação da formação em pós-graduação, outros para a entrada no mercado com uma posterior alternativa de pós-graduação tecnológica e, finalmente, outros são cursos terminais sem a base formal necessária para uma pós-graduação. Os candidatos precisam escolher conscientemente qual caminho podem e querem seguir.
Eu entendo que há uma proposta bem diferente na formação de técnicos para o mercado, de alunos com formação completa de bacharel orientados para o mercado e alunos com uma formação para a pesquisa. As habilidades a serem adquiridas são diferentes, exemplo é o caso dos cursos de certificação em produtos, certamente é ótimo para programar e desenvolver sistemas mas não é nada adequado para a continuação em pesquisa. O mesmo se passa com universidades de ensino e universidades de pesquisa. É claro que esta identificação de perfil deve manter a viabilidade econômica dos cursos, é sempre melhor ter alguma formação na atual estrutura de cursos de formação de profissionais para o mercado do que não a tê-la, mas o modelo precisa ser aperfeiçoado.
Está na hora de mudarmos a visão de mercado e enfrentarmos a realidade de propagandas “Faça Direito por R$ 199,90 por mês“, será que é possível fazer direito (desculpem o trocadilho) por R$ 199,90 por mês?. Isto não é solução, é preciso oferecer cursos técnicos com proposta pedagógica adequada, curtos e para a inserção direta no mercado, cursos superiores para formação direta para o mercado e cursos acadêmicos para a pesquisa em universidades ou grandes empresas. Do ponto de vista social é essencial que as pessoas com capacidade intelectual e vontade de seguir a carreira de pesquisa tenham esta alternativa, diretamente, sem que sejam limitadas pelas suas condições socioeconômicas; uma Educação Pública de qualidade é essencial para este fim.
Esta é a minha visão sobre o assunto: diferentes modelos de Universidade: uma a Universidade Humboldtiana dedicada à formação de quadros científicos, de pesquisadores e de professores de alto nível, outra uma Universidade Tecnológica, dedicada a formação de profissionais para atuar diretamente no mercado tudo isto complementado por Cursos de Formação Técnica e, finalmente, Universidades de Ensino formando bacharéis orientados para o mercado de trabalho não acadêmico. O terceiro componente é o empreendedorismo, que não se ensina mas que é uma qualidade inata que pode ser estimulada e apoiada par estruturas paralelas à Universidade ou por um curso incluindo componentes de Administração.
Desta análise saiu o título deste texto. Precisamos ter Universidades Hulboldtianas para que o Brasil gere pensamento novo e competitivo, hoje pensamento novo é pesquisa de ponta, não há mais pesquisa local o mercado é mundial. Outra vertente, também necessária e essencial, é o Ensino Vocacional orientado diretamente para o mercado não acadêmico, apesar de ambos serem necessários não é possível usar os mesmos critérios de avaliação para ambos. E, mais importante, as Universidades precisam escolher e deixar claro sua orientação. Por outro lado não é possível ter todas as Universidades no modelo Humboldtiano de ensino-pesquisa por absoluta falta de recursos, tanto humanos quanto financeiros; este modelo geral de pesquisa não ocorre em nenhum país do mundo.
Finalmente resta o processo de avaliação, é necessário que tenhamos processos específicos para cada classe de ensino, os proponentes dos cursos devem enquadrá-los em uma das classes definidas pela ISCDE e os órgãos governamentais ou privados devem realizar processos diferentes de avaliação. O importante é entender que há Universidades de Pesquisa e Universidades de Ensino. As primeiras devem formar as pessoas que vão ampliar o conhecimento enquanto as segundas devem formar profissionais competentes e atualizados. Avaliar as duas classes com o mesmo critério é um absurdo, o ENADE faz isso. Pensar que uma Universidade Tecnológica ou de Ensino deva se avaliada pelo paradigma de uma Humboldtiana é, também, um absurdo tão grande quando vender a ideia que todos os cursos são iguais pois oferecem um diploma que, pela nossa burocracia (ou burrocracia?) dá os mesmos direitos a seus portadores.
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