Citamos os artigos científicos brasileiros?

Atualizado há 4 anos


Depois de vários meses de trabalho submetemos um artigo para um prestigioso journal. Depois de muitas idas-e-vindas o artigo é aceto, glória. Em algum site bem conceituado lí que a média de pessoas que leem um artigo é cerca de dez! Nas humanidades cerca de 82% dos artigos não tem sequer uma citação! E atualmente são publicados mais de dois milhões de artigos por ano. Isto é uma loucura. Mas as citações são a alma da validação de publicações pela comunidade e pela CAPES. Isto está certo? Mas, até que consigamos concertar esta esquizofrenia (os artigos são pouco lidos mas constituem-se no elemento central das avaliações) teremos que conviver com o problema das citações. Por outro lado encontramos o hábito dos brasileiros de só citarem artigos de autores estrangeiros. 

Em uma reunião da ABC (nov 2016) para discutir a pesquisa científica no Brasil encontramos esta afirmação:

Com cerca de 80 mil artigos publicados entre 1996 e 2015, a engenharia do Brasil ocupa a 18ª posição no ranking mundial de produção científica de acordo com a base de dados Scimago. “No entanto, a média de 5,7 citações por artigo coloca o Brasil na 34ª posição. Publicamos bastante, mas não alcançamos visibilidade. Também não temos gerado conhecimento tecnológico. Estudos indicam que apenas 1,7% das empresas no país têm capacidade de inovação”, acrescentou o professor da UFSCar Edgar Dutra Zanotto.

A pergunta que surge é: está certo ou errado ou há uma linha muito tênue em solicitar fortemente que cada artigo publicado nos eventos brasileiros referencie pelo menos 1 artigo de nossos autores ou publicados em nossos meios de divulgação científica? Esta pergunta causou, há algum tempo, um flame terrível na lista de banco de dados da SBC. Eu já tenho tratado deste assunto muitas vezes. Pessoalmente considero esta realidade de poucas, ou nenhuma, citações de colegas uma declaração de nos considerarmos “colonos” culturais. Éramos uma colônia de Portugal quando a corte portuguesa, graças ao general Junot e a Napoleão, se mudaram para o Brasil. Uma das ações reais foi a “abertura dos portos do Brasil” às nações amigas, isto é a nação amiga: a Inglaterra. Nossa independência não foi uma guerra contra os impostos do chá como nos USA, mas uma ação de família, mais ou menos isto. Continuamos com um Império que foi numa continuação do governo anterior. Quando a família real fugiu para o Brasil teve que vir por meio do apoio da armada inglesa. Nada de autonomia. Depois continuamos com a dependência, eu mesmo quando pequeno, me lembro de advogados em Porto Alegre considerarem um traje fino aquele feito com um corte de casimira inglesa! Muita coisa mudou mas a mentalidade de colônia permanece.

Estava conversando com um amigo estes dias e ele me mostrou que os autores dos USA reescrevem a história: tudo foi inventado ou feito pela primeira vez lá. O avião foram os planadores a motor catapultados dos irmãos Wrigth, nada sobre Santos Dumont nem sobre Otto Lilienthal. Sobre o computador Konrad Zuse não existiu. Até o alto-falante foi inventado por um obscuro californiano. Nós condenamos o padre Landel de Moura como feiticeiro e não como inventor do rádio. Nós continuamos achando que tudo que é publicado no exterior é melhor e que não vale a pena publicar no Brasil. Como consequência estamos matando nossas publicações start-ups. Fui editor por cerca de 6 anos da Revista de Informática Teórica e Aplicada. No final já estávamos com cerca de 60 artigos em avaliação. Como ninguém cita artigos brasileiros saiu o QUALIS da mesma e, horror, houve uma corrida para retirar artigos para serem submetidos a meios mais “sérios”. Um colega chegou a dizer que eu fazia o papel de editor por diletantismo, desisti e sai da função. Felizmente um jovem colega assumiu e, graças a seus esforços, a RITA está evoluindo novamente. Quantas submissões temos diretamente para o JIDM? E quantos nossos autores estão submetendo muitos artigos no tema para journals? (fica mais bacana chamar revistas de journals pois é em inglês).

Qual a resposta de nossos autores sobre esta falta de referência a artigos brasileiros: “Ah mas ninguém faz o que eu faço“. É o complexo de se achar melhor do que os demais pensando que só os autores internacionais estão em seu nível! Será que os trabalhos brasileiros são uma porcaria? É claro que não, em algumas áreas de recuperação de informação, sistemas de informação e bancos de dados temos especialistas de renome internacional, só para ficar na minha área. Como exemplo existem muitos artigos com a palavra principal XML publicados no SBBD/JIDM: ou seja, é uma área prolífica no Brasil, e não tem nenhuma citação de brasileiros, quanto temos autores referência internacional no tema. 

As críticas à mensagem foram ácidas, com base em uma dita ética e outras mais positivas de apoio à cultura científica nacional. Aqui referencio algumas sem citar os autores (os originais encontram-se na lista BD-Bras) com meus comentário logo a seguir:

Eu acho errado. Acho acadêmica, ética e fundamentalmente errado alguém ter que (ou não poder) citar seja quem for, seja porque for. Tal “politica” é que isso é tipicamente motivado, corrija-me se eu estiver enganado, pelo fato de se aumentar o “citation count” de alguém ou de algum evento e portanto aumentar seu “impacto”. Porem isso leva a uma inflação invariavelmente não correlacionada com merecimento e portanto causando descredito ao citado, exatamente o contrario do que se queria!

Em minha opinião a dita ética é a ética dos dominadores. Podemos conceituar ética como “a ética é um a forma de saber normativo, isto é, um saber que pretende orientar as ações dos seres humanos”. Então fica claro que a ética está inserida no contexto da ação humana. O contexto do agir torna um conjunto de ações aceitáveis para um grupo social. O relacionamento entre os seres humanos cria o fundamento para a construção da ética. Precisamos aceitar que temos trabalhos adequados e que citá-los aumenta, sim, o citation counter e isto faz parte da nossa ética de valorizar o que é nosso. A ética dos dominadores é dizer que o que sai dos ditos países periféricos é pior.

Entendo que quanto um autor escolhe um fórum para submeter seu trabalho, ele demonstra algum interesse por aquele público. Portanto, ele deve ser capaz de estabelecer um diálogo com essa comunidade.  Nesse sentido, as publicações do fórum escolhido deveriam ser consideradas em sua avaliação. Caso contrário, o trabalho reduz sua capacidade de contribuir com a reflexão da comunidade. Além de poder ser considerado como arrogante, uma vez que deseja o direito de se expressar, sem demonstrar conhecimento/interesse pelo trabalho da comunidade em questão. Caso não existam trabalhos relacionados ao tema ou os trabalhos não sejam dignos de citação, esse tipo de informação não deve ser desconsiderada pois contribui para o desenvolvimento da comunidade. 

Considero correta esta afirmação, se alguém quer publicar em um meio de divulgação é porque o considera adequado à sua pesquisa. Então qual o motivo para não citar nenhum artigo anterior deste evento ou revista?

Apesar de concordar com sua preocupação, acho ”errado” obrigar tais citações. Vai na linha de cotas, reserva de mercado, etc., em que se usa mecanismos artificiais para substituir o que deveria ser regido apenas pela qualidade. A toda força corresponde uma reação na direção oposta, mas nesse caso, pode ter certeza, a intensidade da reação seria não igual mas superior e apenas contribuiria para desmoralizar o processo.

Aqui temos, novamente, o problema de um conceito: o que é qualidade? Qualidade é um conceito subjetivo que está relacionado diretamente com as percepções de cada indivíduo. A cultura de um grupo impõe métricas e critérios para o que seja qualidade. Inclusive o autor desta consideração é extremamente competente em sua área, mas onde estão as citações a seus artigos publicados em eventos da SBC em meios de divulgação da mesma SBC? Fiz uma pesquisa e considerei que o número de citações não é adequado. Ai entra, mais uma vez, a percepção cultural de que qualidade é algo feito pelos gurus dos países centrais.

Já faz algum tempo que, numa das nossas reuniões durante o SBBD em que discutíamos o futuro do evento (poucas submissões, artigos apenas em português, pouca internacionalização, etc.), eu disse que o SBBD funcionava muito bem como um ponto de encontro da nossa comunidade, mas que do ponto de vista científico era pouco significativo e poderia até desaparecer sem que representasse um grande impacto, pois muito pouca gente se dava ao trabalho de verificar o que tinha sido apresentado nas edições anteriores e citar em seu trabalhos. Naturalmente, muitos presentes discordaram do meu comentário, mas nada mudou desde então. A nossa comunidade continua ignorando o SBBD/JIDM ao fazer qualquer revisão bibliográfica em seus trabalhos (inclusive projetos encaminhados ao CNPq).

Este comentário finaliza a discussão: é mortal e condensa a situação. Aqui se vê que estamos subordinados à cultura e, consequentemente, à ética dos dominadores. Não acreditamos em nós. Está na hora de mudar isto. Não se trata de nacionalismo barato, mas de cultura real e brasileira. Estou cansado de ver referências a trabalhos irrelevantes enquanto que trabalhos de qualidade brasileiros não são citados. Conclamo aos revisores brasileiros em suas revisões em meios nacionais e internacionais fazer ver aos autores que há trabalhos nossos de qualidade. Escrevam: sugiro que considere em sua revisão de trabalhos relacionados o artigo tal, publicado em XYZ que trata em profundidade ou complementarmente seu trabalho. Considero esta revisão importante para a aceitação de seu artigo.

(Acessos 2.411)