Um grande risco ao discutirmos um assunto qualquer é nos fixarmos nos aspectos formais da discussão. Isso quer dizer que nos concentramos no modelo formal, nesse caso legal, do problema. A discussão de algo tão complexo como a propriedade intelectual, geralmente tem seu foco em problemas legais em vez de rever a realidade que gerou uma certa legislação. Isso é decorrência de os problemas serem inconvenientemente informais e heterogêneos enquanto que a legislação podem ser atrativamente formais. A discussão da legislação evita que enfrentemos a realidade. Para concentrar o foco no principal é importante reconhecer que o problema está localizado no ambiente social e não no modelo que, no caso da Propriedade Intelectual, corresponde às leis que regulamentam o assunto.
O fenômeno descrito acima ocorre com a Propriedade Intelectual, o modelo atual, a legislação, fugiu da defesa correta do direito individual dos autores para se tornar uma forma de apropriação de conteúdos (digitais). O conceito de propriedade intelectual foi criado para salvaguardar o trabalho do autor e garantir sua justa remuneração. Atualmente esse conceito está sendo deformado para proteger interesses de grandes corporações. Por exemplo, histórias recolhidas da tradição européia como a história medieval do Lobo Mau, foram apropriadas sem nenhum pagamento, e transformadas em produto intelectual, com o beneplácito do Governo interessado. Nesse momento existem direitos autorais (autorais?) de até 99 anos, e esse período está em crescimento! O que era conhecimento livre transforma-se em fonte inesgotável de lucro para o primeiro que se apropriar de uma idéia pública. O mesmo está se passando com o acervo cultural da Humanidade, pouco a pouco sendo privatizado. Mesmo edifícios públicos estão sendo registrados como “criação privada” e suas fotos não podem ser publicadas sem autorização e pagamento de direitos! Isso ocorre com o Atomium em Bruxelas.
Por outro lado a perda de referencial ético quanto à cópia está criando uma situação inaceitável. Todo professor sabe que a “cola” é um elemento existente no ensino, há sempre um momento de fraqueza, quando alguns alunos caem em tentação de achar caminhos mais fáceis. Todos sabemos como combater esse erro. Mas a situação está se tornando muito difícil. Aparentemente a cópia simples e pura de trabalhos de outros está se tornando uma ação “normal”. É só fazer uma consulta sobre “trabalhos acadêmicos” e se encontrarão inúmeros serviços de confecção de trabalhos de diplomação com sigilo assegurado! Há algo de muito errado nesse comportamento da nossa sociedade. Uma das origens desta atitude pode estar na ganância de produtores de material com copyright que estimula a “cópia alternativa”, um eufemismo para a pirataria de músicas, de software e de outros materiais digitais. Uma analogia pode ser feita com a Lei Seca, uma visão fundamentalista e míope, que levou à expansão desenfreada do gangsterismo na década de 30 nos USA. O mesmo acontece com o uso imoderado de “direitos” sobre material cultural. Isso não é uma defesa da pirataria, é uma constatação de como começa o processo de cópia e uso livre de conteúdo que deveria ser protegido. A ganância levou a partes significativas da sociedade a considerar normal “copiar” material digital. O afrouxamento do respeito pela propriedade, ou melhor, pelo direito de autoria, está levando boa parte de nossos alunos a copiar conteúdos acadêmicos, e o que é pior, a nem tomarem consciência que esta cópia é fraude, e séria! Inicialmente esta cópia usada como uma defesa do cidadão, passa a ser um comportamento fraudulento quando as barreiras éticas cedem; então “tudo é permitido”.
Este é o grande desafio. Se por um lado a Web permite um amplo acesso à informação, às mídias digitais e ao conhecimento, o interesse de manter no domínio privado esse conhecimento está levando à privatização do mesmo. Em reação surge uma “contra-cultura” que destrói a base da propriedade intelectual. A característica pervasiva da Web aumenta a eficiência de todas as atividades ligadas à informação, as lícitas; as legais, mas não éticas; as ilícitas e mesmo as criminosas. Os desafios a serem enfrentados são: Como manter a viabilidade econômica e o pagamento aos autores? Como garantir uma remuneração adequada aos fornecedores e editores de informação? Como difundir uma visão ética e consistente de reutilização de material intelectual? Certamente passa por uma análise crítica feita pela sociedade e de leis que protejam simetricamente os direitos dos autores e distribuidores e aqueles dos usuários.
Como já diziam, sabiamente, os romanos “In medium virtus”, isso é “a virtude encontra-se no meio”. Hoje está muito difícil encontrar esse equilíbrio, minha percepção do Direito de Propriedade Intelectual é exatamente esta: temos a necessidade de encontrar o equilíbrio entre a proteção ética dos conteúdos e a liberdade ética de ampla difusão e reuso do conhecimento.